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O que diria Mário Schenberg sobre a arte em tempos de cólera?, por Carlos Coimbra
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Cultura
Seg, 27 de Novembro de 2017 04:29
Carlos_CoimbraSinceramente não sei. Mas vale alguma digressão, reflexão e pitada de licença poética para tentar adivinhar o que Schenberg diria dos ataques a obras como “Eu e o Tu” de Lygia Clark. E essa digressão não será tão fictícia, pois a arte em solo verde e amarelo já sofreu perseguições e o próprio Schenberg vivenciou o problema ao vivo.
Mas quem é Mário Schenberg e por que Mário Schenberg?
É impossível relatar a importância de Mário Schenberg (1914-1990) em poucas linhas. E nem é a tarefa do presente texto. Para resumir, ele foi um físico pernambucano, do Recife, considerado por muitos como um dos maiores cientistas brasileiros de todos os tempos, ao lado de nomes como Graziela Barroso, Carlos Chagas e César Lattes. Além disso, ele foi crítico de arte e um engajado político do Partido Comunista Brasileiro (PCB) em época de perseguição e cassação de direitos.
Para entender de quem estamos falando, basta dizer que Schenberg, que algumas vezes assinava o nome como Schönberg, era um curioso nato, totalmente mergulhado nas novidades científicas de sua época. No período entre 1940 e 1990, trabalhou com vários aspectos da física moderna, colaborando com nomes internacionais de peso como Chandrasekhar (limite astrofísico de Schönberg-Chandrasekhar), George Gamow (processo Urca na formação de supernovas) e David Bohm (álgebra geométrica em teoria quântica). Conheceu Einstein e trabalhou com Fermi, Pauli e Prigogine. Foi diretor do Instituto de Física da USP e levou o primeiro computador com fins acadêmicos àquela universidade.
Outro ponto interessante, é que desde a juventude Schenberg estava envolvido com o marxismo militante. Em São Paulo elegeu-se duas vezes deputado estadual pelo PCB. Como parlamentar, foi um dos que iniciou o movimento paulista do “Petróleo é Nosso!” e a defesa da soberania brasileira relativa a minérios e fontes de energia nuclear. Em 1947, ao lado de Caio Prado Júnior e da bancada do PCB semeou o instrumento de amparo à ciência e tecnologia que mais tarde se transformaria na FAPESP. Um ano depois, em 1948, o PCB entrou na clandestinidade e Mário Schenberg teve o seu mandato cassado.
Além de sua notável carreira científica e atuação política, ele também escreveu alguns ensaios sobre filosofia, especialmente filosofia oriental. Mas o que realmente chama atenção é o seu inusitado envolvimento com o movimento artístico brasileiro. Schenberg tinha um profundo conhecimento sobre artes e pode-se mesmo dizer que foi muito influente sobretudo no cenário nacional das artes plásticas. Só para citar um resultado disso, hoje a Escola de Comunicação e Artes (ECA) da USP tem um Centro de documentação e pesquisa em artes denominado Centro Mário Schenberg.
Focando o assunto agora no campo artístico, ressalte-se que Mário Schenberg teve relações estreitas com Di Cavalcanti, Lasar Segall, Cândido Portinari, Marc Chagall e Pablo Picasso. Seus artigos de crítica da arte analisavam profundamente as obras de artistas como Alfredo Volpi, Hélio Oiticica e Lygia Clark. Isso fez com que algumas vezes fosse convidado para compor o júri da Bienal de São Paulo. Afora isso, foi ele quem organizou a primeira exposição de Volpi, em 1944, e em 1961 uma retrospectiva do artista.
A vida de Schenberg se tornou muito tumultuada depois de 1964. Com a ditadura militar, foi preso, cassado e aposentado compulsoriamente. Basta dizer que nem se passara uma semana do golpe, e ele já estava detido na sede do DOPS em São Paulo. Após passar dois meses encarcerado, foi liberado e hospitalizado devido a uma crise de diabetes. Mesmo assim, vários processos foram movidos contra ele e sua prisão preventiva foi decretada. Por cinco meses esteve escondido da justiça, mas acabou se entregando. Sua prisão coincidiu com um convite feito pelo Japão para uma palestra no congresso de física de partículas. Isso gerou grande repercussão internacional e um movimento liderado pela comunidade científica pressionou o governo brasileiro a absolver Schenberg.
Sobre a questão de sua aposentadoria compulsória, em 1969 o Ato Complementar 75 (que funcionou como uma espécie de arremate do AI-5) proibiu qualquer professor ou técnico administrativo do ensino público de exercer sua função caso estivesse envolvido em faltas contra a “ordem pública”. Como esse era o caso de Schenberg, ele foi proibido de exercer suas funções, incluindo entrar no campus universitário da USP ou de qualquer outra instituição de ensino. A situação era crítica, como o próprio Schenberg relatou em entrevista a Lourdes Cedran em 1985: “(…) havia um serviço enorme de informantes do SNI. Eu vi muita gente desaparecer, que foi morta, torturada; vários estudantes da física que sumiram e devem ter sido mortos em tortura e enterrados em qualquer lugar.”
A censura durante a ditadura também afetou profundamente a liberdade de expressão dentro das artes plásticas. Muitas obras foram consideradas criminosas pelo regime e censuradas.
Aparentemente, nos dias de hoje as exposições em museus e centros culturais não sofrem censura governamental. Mas, como todos já sabem, sofrem boicotes por parte de grupos que explicitamente estão dentro do governo. É o caso dos boicotes organizados pelo Movimento Brasil Livre (MBL), uma associação de jovens pseudoliberais em busca de financiamento para seus projetos de ascensão ao poder.
Na verdade, boicote foi o nome que os integrantes do movimento deram a sua atitude. Mas esmiuçando, o que de fato aconteceu foi uma manifestação de fundamentalismo religioso. Queimar uma imagem de Judith Butler é ou não fundamentalismo religioso?
Dessa forma, os fatos indicam que o MBL nada mais é que um conglomerado de jovens conservadores, carolas da velha ordem ditatorial e cujo conceito de arte parou no tempo das iluminuras em ouro das bíblias medievais.
As atitudes do MBL, ou qualquer outro movimento similar, diante das expressões artísticas são extremamente perigosas. Além dos próprios fatos em si, podem ser a semente para manifestações mais encorpadas e ainda mais violentas, rumo a proibições de cunho mais oficial por parte do próprio governo brasileiro, o que definitivamente se caracterizaria em censura. A censura que vem timbrada com o mentiroso selo “foi o povo quem quis”. Que é o selo do golpe plutocrata baseado em uma suposta “vontade popular”. Leia-se “vontade popular” como “vontade de setores da classe média conservadora subserviente”.
Nesse sentido, como não lembrar que o regime militar se apoiou em uma suposta “vontade do povo” que era apenas a vontade do movimento Tradição, Família e Propriedade (TFP)? O MBL não é a nova cara do TFP, sigla criada para dar ares de “povo” a golpes institucionais? E após o golpe institucional sempre vem o Estado de exceção, aquele que estanca a sangria, com Supremo, com tudo. O golpe de 1964 atendeu aos caprichos do TFP; o AI-5 (1968) é o símbolo disso. E como não lembrar que após o AI-5 tivemos a consequente censura bárbara da ditadura às artes plásticas, como aquela encenada em 1969, quando um general e alguns militares armados de metralhadoras entraram no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro para, fechando suas portas, prender as obras e impedir a mostra dos artistas brasileiros selecionados para representar o país na Bienal de Jovens em Paris? Após esse fato, muitos artistas esvaziaram a X Bienal de São Paulo de 1969 e, aqueles que sobreviveram à perseguição, foram exilados.
Mário Schenberg decidiu enfrentar o sistema e participou da X Bienal, motivando os artistas que se dispuseram a participar a exporem trabalhos ainda mais subversivos e contestadores. Como destaca Caroline Schroeder, “mesmo consciente da legitimidade dos protestos políticos que envolviam a mostra, sob um olhar aperspectivo, a participação lhe parecia válida”. A comissão da Bienal, para evitar maiores esvaziamentos, teve que engolir o engajamento de Schenberg e toda a arte subversiva promovida pelas estratégias inclusivas do físico/crítico. Por exemplo, a promoção da obra “Veja o Nu”, repetidamente censurada pelo regime. No dia da inauguração da X Bienal, Schenberg publicou um artigo no Jornal do Brasil propondo que o antídoto para a repressão era a arte ainda mais transformadora e revolucionária. Segundo Hélio Oiticica, a visão de Schenberg da arte em tempos de cólera é a da luta de resistência em que a posição cultural atuante é aquela que é visceralmente contra o conformismo cultural, político, ético e social.
Tome-se pois tais opiniões de 1969 como uma boa estratégia para os artistas do agora. Do contrário, ver os ataques do MBL sem promover a resistência necessária é alimentar a barbárie e a própria alienação cultural que corre nas veias daquele movimento anedótico e reacionário.
Provavelmente Schenberg veria os ataques do MBL a obras como “Eu e o Tu” de Lygia Clark como motivo para risos e choros. Pois a ignorância sobre a obra promoveu conclusões precipitadas tais quais “ataque à família”, “ataque aos valores religiosos”, “ataque às crianças”.
O que é o “Eu e o Tu” de Lygia Clark? Inicialmente, para compreender a obra, basta dizer que Lygia Clark introduziu no Brasil, exatamente na época da ditadura militar, uma forma de arte plástica interativa e dialogante. Um convite ao espectador para intervir na obra de forma física.
O visitante, ao interagir com a peça, pode recriá-la, negando com isso “a sacrossanta intocabilidade da obra de arte”, para usar as palavras de Mário Pedrosa. No “Eu e o Tu” o toque questiona a individualidade e coloca o visitante masculino na pele do feminino e vice-versa. O fluxo desse tipo de obra deve muito à presença de Schenberg nas bienais, quando as salas dedicadas à arte brasileira, que antes se destacavam somente por abstratos e concretos, davam lugar às novas experiências dialogantes, como as de Lygia Clark.
José Luiz Goldfarb, em seu livro sobre o pensamento de Schenberg, destacou que ele “não conseguia manter seus posicionamentos políticos dentro de juízos pré-concebidos. Sabia que, em determinados momentos, as posições derivadas das definições ideológicas podiam aparecer totalmente invertidas. Na arte, o envolvimento social, coletivo e até mesmo cósmico do indivíduo seria sempre mais denso. Compreendendo os sinais do inconsciente, o ser humano se tornaria um agente transformador do meio em que vive.”
A falta de liberdade para a produção artística, principalmente nos anos 1970, e a desestruturação do sistema das artes plásticas no Brasil – com o exílio da crítica, a perseguição dos artistas, entre outros fatores – culminaram numa mudança profunda do significado da arte no país, que ocasionou o chamado “fim das vanguardas” e o processo de alienação cultural do povo brasileiro.
Naquela época, Mário Schenberg, além de impedido de ser cientista dentro da academia, também sofreu dura perseguição na seara das artes.
Em carta a Clarice Lispector, Schenberg descreve esse período de forma bastante melancólica: “Desde 1970, minha situação geral se modificou bastante, em consequência do isolamento em que passei a viver, como resultado de minha aposentadoria e da impossibilidade de exercer a crítica de arte militante. (…) Agora estou escrevendo um pequeno ensaio sobre a crise atual das artes plásticas, que talvez seja um ponto de partida para um ensaio mais longo.”
Não deixemos que desgraças do passado se repitam nos museus do agora.
Para quem quiser se aprofundar, indico ainda mais dois livros que avançam nesse tema de Schenberg e sua relação com as artes: “Schenberg: Crítica e Razão”, de Alecsandra Matias de Oliveira (EDUSP) e “Mário Schenberg”, de Sergio Cohn (Azougue Editorial). Além, é claro, do livro de Schenberg sobre arte intitulado “Pensando a Arte”.
Carlos H. Coimbra (twitter: @carloscoimbra9) é professor da Universidade Federal do Paraná e cientista da área da astrofísica e cosmologia. Gosta também de dar pitacos em áreas como meio ambiente, aproveitamento de energia e cultura em geral.

O retrato de Schenberg que figura no texto foi retirado do Wikimedia Commons.

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