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A solidão da razão por Carlos Alberto Dórea
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Cultura
Dom, 08 de Outubro de 2006 09:31
Livro de Marcelo Coelho expõe a crítica cultural como atividade de um jornalismo bem comportado

Recentemente o cineasta Julio Bressane definiu a crítica como uma atividade de “funcionários de jornal, que tem dedicação a um determinado espaço que precisam preencher de acordo com o que é possível colocar”, não tendo gosto, compreensão nem tempo para compreender o que se passa 1.


Suponhamos que não se trata da opinião de um cineasta ranzinza e, sim, de alguém sensível a este fenômeno moderno que é o abastardamento da crítica e sua expulsão dos meios de comunicação de massa. Não são poucos também os artistas plásticos que acusam a imprensa de acumpliciamento com o mercado, valorizando uma arte integrada, novidadeira, mais do que nova; criada por artistas jovens e estreantes, mais do que críticos conseqüentes da sociedade que financeiriza as artes. Também o livro, a celebração do best seller, encontra grande sustentáculo na imprensa.


Talvez este processo haja mesmo começado com a profissionalização do jornalista, a partir dos idos de 1969, quando os próprios jornalistas trataram de garantir para si esta reserva de mercado. A militância sindical deu-se em boa medida contra os críticos, sem registro sindical -coisa que exigia a formação nas faculdades de jornalismo. Como passou a existir apenas uma porta de entrada para os jornais, deu no que deu.


Lívio Xavier, Mário Pedrosa, Mário Schemberg, Antonio Candido, e tantos outros que se fizeram na crítica cotidiana, através dos jornais e revistas, especialmente em “suplementos” culturais, hoje são espectros do passado. A formação deles em nenhum momento dependeu de qualquer coisa que se possa entender tecnicamente como “jornalismo”. Ao contrário, que o jornalismo tenha se tornado uma profissão em parte devotada à crítica cultural parece já um sinal dos tempos, se tomarmos a crítica como um conhecimento que anda no sentido contrário à cultura de massas e que pretende subtrair o leitor do seu curso caudaloso, confrontando-o com um ponto de vista antitético.


O livro recém-lançado de Marcelo Coelho, “Crítica Cultural: Teoria e Prática” (Publifolha, 2006) parece, no entanto, escrito com a missão de tirar a crítica do atoleiro atual, pois acredita que é possível reformar o jornalista como crítico cultural. A obra é um passeio erudito sobre vários territórios da crítica, conduzindo o leitor por uma bibliografia mínima de formação de quem pretenda se aproximar da produção cultural moderna sem que esta seja a sua “hora do espanto”. Além de selecionar um caminho diz como trilhá-lo.


Por suas páginas toma-se contacto com as grandes polêmicas que marcaram a vida cultural do século XX e as questões que a polarizaram. Familiarizar-se com o modernismo e a crítica reacionária que teve que enfrentar quando do seu surgimento; inteirar-se dos modos críticos engendrados pelo próprio modernismo; percorrer as discussões sobre o kitsch; sobre o realismo e o historicismo; sobre o nacionalismo estético, entendido como critérios que se formam solidariamente com os movimentos de emancipação nacional; sobre as polêmicas clássicas relativas à cultura de massas; sobre o “pós-moderno” -eis aí o percurso obrigatório que Marcelo Coelho estabelece para a formação do jornalista cultural.


Na trajetória do aprendizado, ciladas stalinistas, nacionalistas, formalistas, são apontadas a cada passo; de sorte que se tem mesmo a impressão de que algo verdadeiramente grandioso dispõe-se como tesouro ao final da formação crítico-cultural da qual o livro é, ao mesmo tempo, síntese e aprofundamento. Esta é a grande virtude do livro -o didatismo, o panorama amplo, a introdução inteligente aos temas clássicos da crítica cultural- e o que o recomenda não só para jornalistas.


Mas Marcelo Coelho não é o jornalista típico. Formou-se em ciências sociais na USP, em 1980, e se tornou mestre em sociologia. Embora se dedique à crítica cultural e à crônica na “Folha de S. Paulo”, é impossível vê-lo apenas como fruto da indústria de comunicação. Num certo sentido, é um estranho no ninho, o que contrasta com a situação anteriormente citada, de perfeito aninhamento de intelectuais acadêmicos e militantes no jornalismo. Talvez por isso mesmo seja tão aguda nele a percepção das lacunas de formação do jornalista. No entanto, a pergunta que seu livro sugere é: que jornalismo é este que está a exigir a formação didática para a crítica cultural?


Marcelo deixa deliberadamente de lado a análise dos gêneros de escrita jornalística, como a reportagem, a resenha, o artigo, a entrevista; deixa de lado também as especialidades críticas, como as artes plásticas, a dança, o teatro, a literatura, o cinema. Seu ponto de vista é aquele que transita por questões teóricas que se surpreende em atitudes comuns entre público, críticos e artistas. São exemplos a rotulação (caricatura) da realidade, a assunção paternalista do ponto de vista do público (populismo) e assim por diante. Em outras palavras, o autor almeja uma catarse do leitor que se aproxima da crítica cultural.


Pode mesmo parecer uma carência do livro a falta da análise do “momento jornalístico” que produziu o abastardamento da crítica antes referida. Mas uma leitura mais atenta permite detectar em “Crítica Cultural: Teoria e Prática” uma idéia subjacente sobre o próprio jornalismo como receptáculo da crítica cultural.


Marcelo acredita, por exemplo, que o jornalismo se diferencia do ensaio, isto é, que o jornal não abriga o ensaísmo. Certamente pensa no “ensaio como forma”, na concepção crítica de Theodor Adorno 2, e, ao analisar a atitude jornalística diante do modernismo brasileiro, mais especialmente o “escândalo” que foi a exposição de Anita Malfatti vista pela crítica de Monteiro Lobato, aponta, de um lado, “a falta de cuidados maiores em esclarecer o próprio público, (quando) raros são os exemplos de algum autor pretendendo ‘explicar’, sumariamente que seja, a arte moderna”; por outro lado, entende que “textos mais longos, de intenção teórica, ou mais densos, como os manifestos, têm naturalmente seu papel no jornalismo cultural” 3.


Por este caminho, Coelho chega à concepção de um “jornalismo modernista” no qual se contrapõem duas vertentes: aquela submetida ao ”imperativo mimético”, ou idéia segundo a qual “uma realidade nova precisa ser expressa em linguagem nova” e a outra, a do “imperativo realista”, ou “idéia de que uma realidade nova deve ser retratada segundo os meios de expressão tradicionais” 4.


Tensões como essa são determinadas em parte pelo modo como o escritor concebe, na outra ponta, o leitor. Afinal, imagina um ignorante ou de um iniciado? Trabalha pela nivelação do conhecimento ou pelo aprofundamento crítico? Mas não se trata de alternativa adstrita ao modernismo, já que em muitas outras polêmicas também se pode construir esta oposição analítica. Então, o leitor de Marcelo Coelho poderia se perguntar se não é próprio do jornalismo ter que eleger entre esses dois caminhos.


Marcelo indica ser preferível a “tarefa de descrever” os quadros da exposição de Anita Malfatti do que a “atitude” crítica, destrutiva e reacionária de Monteiro Lobato 5, embora reconheça nesta algo integrado ao próprio “sistema modernista”, na medida em que Lobato chamou a atenção para algo que poderia passar despercebido da sociedade mais ampla, quando o mundo das artes era bastante elitista, onde “tanto consumidores quanto produtores pertenciam a uma camada social cujas suscetibilidades não interessava ao jornalismo ferir”. Mas, acrescenta Marcelo, “um erro de julgamento, ainda que tão comprometedor e rude como o de Lobato, é ainda assim melhor do que nenhum julgamento” 6. Esta ambivalência do “jornalismo modernista” expressava, para Marcelo, a situação dos vanguardistas brasileiros que viviam uma sorte de “isolamento midiático”, quando publicavam em jornais voltados para um público conservador.


Desse modo, e aos poucos, Marcelo Coelho vai tecendo uma idéia sobre o “gênero jornalístico”, indicando o que lhe é típico, como que “a maior parte das discussões se dê preferencialmente em torno de rótulos, e não de realidades; aquilo que servir como fonte de provocação e de desmentido rende mais linhas de jornal do que qualquer discussão estética aprofundada”.


Por isso mesmo, afasta-se o jornalismo do “explicar” o modernismo, pois se os artigos “explicassem claramente suas intenções e princípios, estariam perdendo o seu sentido gestual” e como o moderno “nasce da colisão de um público leigo e uma comunidade de artistas, críticos e apreciadores” a sua obra de arte parece ser analisável “não apenas segundo duas dimensões (forma e conteúdo), mas também em função de uma terceira dimensão, a ‘gestual’” 7.


Para o autor, o “ato jornalístico” é o ato que visa “a informação”. Nesta formulação ajusta-se a sua admiração pelos textos claros, didáticos, de Ortega y Gasset -filósofo espanhol cuja superficialidade já lhe valeu o epíteto de “Ray Coniff da filosofia”. É exemplo o famoso texto de Gasset, de 1924, sobre a “desumanização da arte”, onde o filósofo divide a arte e seus cultores em “povão” e elite. Mas Gasset, um elitista, dirige-se “ao homem de bom senso, ao cidadão médio, o leitor comum” -registra Coelho- e a vantagem do seu livro foi ter sido em parte “originalmente publicado em artigos de jornal (e) cada capítulo do volume reinicia, com novos exemplos e ganchos, a argumentação anteriormente desenvolvida, aclarando-a antes de cada passo adiante” 8.


Ora, se um filósofo pode ser uma espécie de “jornalista”, talvez coubesse a questão inicial de forma invertida: por que o jornalismo brasileiro, em vez de expulsar os críticos acadêmicos, substituindo-os por gente sem formação crítica, não os reformou nas técnicas jornalísticas, na “narrativa” que lhe é típica?


Quiçá a chave de tudo esteja mesmo na questão das “técnicas jornalísticas”. Aparentemente devotados a uma “estética jornalística”, os célebres “manuais de redação” ensinam, por exemplo, a “necessidade de suprimir adjetivos de um texto noticioso ou, mais ainda, de uma manchete” 9. Diz a teoria subjacente que o uso da redundância, da exclamação, do adjetivo, visa uma prefiguração do efeito que, antes de aumentar a inteligibilidade do que é comunicado, ajuda a manutenção da passividade do leitor. Assim, “o jornalismo popular presume, de alguma forma, que seu leitor não dispõe do vocabulário de revolta”.


Ao proceder desse modo, o jornalismo sensacionalista forja uma “comunidade de interesse” com seu leitor, ao mesmo tempo em que peca por falsidade: “jornais sensacionalistas vão se tornando, com freqüência, produtos feitos por jornalistas de elite, com nível universitário, para um público supostamente inculto, a célebre ‘massa’ das teorias”. Esta cilada significa uma suposta concordância entre as classes: “algo como o hábito do professor universitário de discutir futebol com o chapeiro da lanchonete” 10.


É o caso, então, de nos perguntarmos se não há, aqui, uma idealização do professor universitário avesso e distante da cultura de massas. Em outras palavras, se não se está tomando a cultura “uspizada” como antítese da cultura popular, criando uma situação de “comunicação kitsch” sempre e quando entram em contato. E é indiscutível que o “manual de redação”, além de regras de gramática, pretende domesticar a linguagem num sentido preciso e impositivo, estabelecido pelos donos dos jornais.


Textos curtos, às vezes telegráficos; “informativos”, mais que críticos; uma nova precisão vocabular (por exemplo, a nova “moda” do politicamente correto, que determina chamar a antiga “poetisa” de “a poeta”); uma nova atitude diante da “fonte” (por exemplo, denunciando que “não retornou a ligação”, como se o telefone fosse o instrumento por excelência do jornalismo); os colchetes em meio a uma entrevista, “explicando” o que o entrevistado quis dizer segundo uma idealização da ignorância do leitor -tudo isso desenha um novo campo de comunicação do qual, obviamente, está excluído o pensamento crítico ao antigo modo. Como diz Marcelo Coelho, um critério válido “para a atividade do crítico ou do jornalista (...) seria o de ver o quanto determinada obra questiona e modifica os critérios com que queríamos avaliá-la” 11. O mesmo se poderia aplicar aos jornais: quais os critérios que constroem o seu modo crítico?


Num texto clássico de Georg Lukács (infelizmente Marcelo passa ao largo dele, embora não ao largo do seu autor), conceitua-se uma clara distinção entre “narrar” e “descrever”. Lukács compara o modo como Zola e Tolstoi se apropriam literariamente de uma corrida de cavalo; em Zola como um fato acidental, um adereço no romance, em Tolstoi como um acontecimento carregado de drama, que determina a narrativa daí em diante.


1 - “Folha de S. Paulo”, 12/06/2006.


2 - Theodor W. Adorno, “El Ensaio como Forma”, “Notas de Literatura”, Barcelona, Ediciones Ariel, 1962.


3 - Marcelo Coelho, “Critica Cultural: Teoria e Prática”, São Paulo, Publifolha, 2006, pág. 65.


4 - Marcelo Coelho, idem, pág. 63


5 - Idem, pág. 55.


6 - Idem, pág. 56-57.


7 - Idem, págs. 91, 102 e 107.


8 - Idem, pág. 115.


9 - Idem, pág. 173.


10 - Idem, pág. 175.


11 - Idem, pág. 157.

Publicado Originalmente na revista Trópico de Julho 2006

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Última atualização em Qua, 25 de Outubro de 2006 16:54
 

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