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Elza Soares é o norte da bússola do enegrecimento', escreve Celso Sim
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Comportamento
Dom, 24 de Dezembro de 2017 05:38

Celso_SimCheguei atrasado, no sábado de aleluia da Páscoa de 2015, para o almoço que Elza Soares oferecia ao núcleo criativo do CD "A Mulher do Fim do Mundo" em seu apartamento de frente para o mar de Copacabana.

Sentei na cabeceira da mesa, de frente para Elza, e atrás dela vi o mar. Atrás de mim, Elza via, refletidos na parede de espelhos, o mar, minhas costas, a sala, os convidados e a si mesma. Elza e seus duplos, sendo ela o centro do mundo naquele instante, como uma ilha rodeada de sons e sentidos.

De chofre ela pergunta: "Celsinho, o que pensa de Getúlio Vargas?". Pensei, o que falar?

"Elza, sou fascinado por Getúlio. Acabei de ler o terceiro volume da biografia escrita por Lira Neto."

Ela ficou em silêncio por instantes e começou: "Me lembro de papai quando Getúlio foi visitar a pedreira, papai era 'blaster' [detonador]". E contou histórias da sua vida que são parte da história do Brasil eterno, em perspectivas giratórias como se ela fosse um farol iluminante. Viajei com Elza e pensei: "Estamos em pleno mar".

Ela contou sobre quando seus pais se conheceram: seu pai, ferido em uma batalha de rua entre integralistas e getulistas nos anos 1930, é encontrado na calçada por sua mãe, que o leva para casa e cuida de seus ferimentos. O pai explodia pedras para fazer delas peças usadas no saneamento da cidade do Rio de Janeiro.

Senhora dos tempos, Elza cortou, deliciosa: "Mas eu não tinha nascido nessa época."

Removendo memórias e girando perspectivas, saí do seu apartamento e lá deixei o poema "Nocaute", que havia pedido para a dramaturga e atriz Grace Passô escrever, com o intuito de que Elza gravasse como faixa falada do CD.

Caminhando sozinho entre o bairro de Laranjeiras e o teatro no Catete, fui acometido por uma lembrança da minha infância esquecida que me fez chorar convulsivamente: minha mãe, Ivete, rodava e sambava, alegre e potente, ouvindo Elza Soares —a rainha do samba— cantar até o fim sem fim do encanto.

Aquele girar da minha mãe, mestiça brasileira mais para preta que para branca, era o que se chama hoje de empoderamento feminino e negro.

Penso que chorava ao me lembrar dessa cena pois naquele instante tomei consciência da importância de uma artista gênia e destemida como Elza para outras mulheres negras e para seus filhos no Brasil que negaceia o racismo.

Elza é, sempre foi e será um norte dessa bússola do enegrecimento. É preciso enegrecer!

O país que mais traficou pessoas negras no planeta passou os últimos 500 anos querendo embranquecer. São as mulheres negras a vanguarda desse poder.

Parafraseando Angela Davis, citada por Grace Passô no espetáculo "Preto", da Companhia Brasileira de Teatro: "Se e quando uma mulher negra for livre, todos e todas seremos".

Assim como esta outra, da mesma peça: "Fazer com que o enegrecimento seja maior, mais potente no lugar onde estamos".

Girando memórias que são perspectivas, nomeio aqui mulheres negras brasileiras poderosas: da mítica caymmiana e humana mãe Menininha do Gantois (Maria Escolástica da Conceição Nazaré) a Clementina de Jesus, de Ruth de Souza a Elizeth Cardoso, de Aracy de Almeida a Zezé Motta, de Alaíde Costa a mãe Stella de Oxóssi, das poetas Stela do Patrocínio e Maria Tereza às artistas Denise Assunção (imensa atriz e cantora), a poeta e atriz Roberta Estrela D'Alva, Grace Passô e as mulheres inflamáveis deste presente quase futuro, a trans-cadeirante Anita Silvia do Grupo Mexa e da poeta-profeta e cantora Linn da Quebrada, somos todos e todas Elza Soares.

*

Nocaute (Grace Passô)

arrancou os dois olhos, pôs
na mão, fez em si a escuridão.

como ela não se vê, na maré não
se descrê, tirou o homem pra
dançar, mas não era, era o mar.

dançou por noites inteiras tanto,
brilhante, cega, camuflou-se plâncton.

fez discurso para yemanjá,
exigiu do mar um altar.

tocou a terra, a mão decifrou o
chão, a era, era ela,
o mar enfim se fechou.

a áfrica aqui em braile no chão
de todos os altares seus olhos,
nocaute, revelou.

A cantora Elza Soares no Hotel Marina, no Rio de Janeiro, em 2002 (Foto: Bel

CELSO SIM, 48, cantor, compositor e ator, foi diretor artístico do álbum "A Mulher do Fim do Mundo", de Elza Soares

Artigo publicado originalmente em http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2017/12/1945400-elza-soares-e-o-norte-da-bussola-do-enegrecimento-escreve-celso-sim.shtml

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