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Casei com uma feminista. Por Rubens Casara
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Comportamento
Qua, 04 de Julho de 2018 05:44

Rubens-CasaraComunismo e feminismo: o demônio reside na ignorância. Em 1998, o escritor Philip Roth publicou o livro Casei com um comunista, no qual aborda os traumas do pós-guerra, a paranoia anticomunista, o fenômeno do macarthismo e as perseguições político-ideológicas que destruíam o laço social e a perspectiva de mudança radical na sociedade norte-americana.

No romance, um célebre ator de rádio (Ira), de origem humilde e defensor de causas progressistas, passa a ser perseguido em razão das suas opções político-ideológicas a partir de um livro intitulado Casei com um comunista, escrito pela atriz de cinema mudo e antissemita com quem se casou (Eve). Trata-se de uma história sobre traição, crueldade e vingança, mas, sobretudo, sobre o medo da liberdade, do pensamento e da diferença.

Ainda hoje, há quem explore os preconceitos, a ignorância e o medo ligados ao significante “comunismo”. Demonizou-se o comum, demonizaram-se pessoas. Ainda hoje, homens e mulheres são atacados por serem etiquetados de “comunistas”. A paranoia anticomunista permite que pessoas maliciosas criem e apontem inimigos imaginários para pessoas ignorantes que se deixam contaminar pelo ódio, afeto que tem inegavelmente funcionalidade política. Não é difícil perceber que o ódio contra a “esquerda” e os “esquerdistas”, reais ou imaginários, incentivado em um país profundamente desigual como o Brasil, atende aos interesses daqueles que querem manter a desigualdade.

Com relação ao feminismo, não é muito diferente. O ódio que a palavra desperta está intimamente ligado a um sistema de privilégios que resiste e à posição daqueles que não querem ver esse estado de opressões, que se dão nos registros do real (naquilo que não encontra palavras), do simbólico (da linguagem) e do imaginário (da imagem que se tem do mundo), desaparecer. No que diz respeito ao medo que gera, à demonização de seus militantes, à ignorância sobre a causa, às certezas delirantes de seus opositores e ao preconceito, não há muita diferença entre o comunismo e o feminismo. Compreendi isso ao casar com uma feminista.

Feminismo, informação e transformação

Não era alienado ao ponto de deixar de perceber as diferenças de tratamento entre homens e mulheres. Sabia que o feminismo era a politização contra uma forma de opressão que alguns chamavam de dominação masculina. Mas isso era muito pouco, e eu não reconhecia a minha ignorância sobre o feminismo, com suas variações, teorias e práticas.

Ao conviver com Marcia e suas amigas feministas passei a compreender melhor os jogos de poder cunhados no ambiente patriarcal. Com as leituras que elas me estimularam a fazer, percebi que “mulher” (e o mesmo acontece com “negro”) é uma heteromarcação que o homem branco inventou para etiquetar seres, fabricar diferenças e justificar tratamentos diferenciados, diversas formas de opressão e a objetificação/mercantilização desses corpos.

Ao compreender o que para a Marcia significa ser feminista, para além da ideia de que ser “mulher” é o resultado de um processo de construção, como já dizia Simone de Beauvoir, me dei conta de que não havia casado com uma mulher, mas com uma feminista. Ela nunca se conformou em ocupar o espaço historicamente reservado às mulheres. E isso me encantou. Não seria capaz de admirar uma pessoa que aceita posições subalternas ou finge acreditar em uma falsa igualdade que, em concreto, não existe. Graças a ela, abandonei visões essencialistas ou leituras simplistas e mistificadas sobre o gênero e o sexo.

Em casa, aprendi com Marcia sobre a política da escuta. As mulheres, pelo menos as que perceberam a necessidade de politizar a questão de gênero, ensinam que é preciso saber ouvir, em especial aquelas que normalmente são silenciadas. Correlato ao direito de falar, apreendi que há o poder-dever de ouvir. Ao levar o homem a descobrir que é impossível falar por ou como fala aquela que sente na pele a opressão (e o feminismo negro fala do local de quem sente dupla opressão – daí a importância da expressão “dororidade” cunhada por Vilma Piedade), o feminismo produz uma saudável ferida narcísica e ajuda a desconstruir o “eu idealizado”, culturalmente pensado no ocidente como “branco” e “heteronormativo”.

Com as feministas também se aprende que não há hierarquia de opressão. Mais do que isso. Aprende-se a importância da “interseccionalidade”, termo cunhado para dar conta de que as pessoas, e em especial as pessoas marcadas como “mulheres”, experimentam a opressão em diversas configurações e em diferentes graus de intensidade, por diversos motivos. O feminismo é (ou, pelo menos, deveria ser) radicalmente contra qualquer forma de opressão.

A partir da ético-poética feminista, que leva à preocupação com todas as formas de opressão enquanto quer construir um mundo melhor, passei a perceber o potencial altamente revolucionário daquilo que antes eu reduzia a uma mera luta por questões “das mulheres”. O feminismo está vocacionado a atingir a todos, todas e todes (na medida em que a sociedade necessita de um “feminismo em comum”, ou seja, capaz de modificar a sociedade, homens, mulheres e aqueles que se libertaram da necessidade de se identificar necessariamente como “mulher” e “homem”), e isso porque a tradição patriarcal efetivamente torna a todos piores, homens ou mulheres que pensam e agem no mundo da vida a partir da pré-compreensão e do repertório cultural cunhados no contexto patriarcal.

Pensamento autoritário vs feminismo

Nos últimos tempos, marcados pelo crescimento do pensamento conservador, entre homens e entre mulheres, o feminismo de Marcia e de suas companheiras me permitiu perceber com mais clareza o caráter funcional do machismo e a criação da mulher, em particular da “mulher empoderada”, como uma inimiga/concorrente a ser destruída. O machismo, como toda forma de preconceito e opressão, sempre cresce em momentos de ignorância, confusão e mistificação como este em que estamos lançados.

A necessidade de etiquetar “mulheres” como “incompetentes”, “burras”, “loucas” ou “histéricas”, para além da evidente funcionalidade política de conter tanto o surgimento de novas potências políticas quanto a construção de uma nova sociedade mais igual, também se explica pelo medo e a incapacidade de reflexão daqueles que se acostumaram a pensar através de estereótipos, chavões argumentativos e de fórmulas mágicas para todos os problemas da sociedade (o que, em certos casos, ajuda a explicar algumas soluções simplistas para os graves problemas de desigualdade e os discursos que colocam a culpa na vítima pelas agressões sexuais protagonizadas por homens)  e pelo ressentimento de mulheres que, lançadas na tradição patriarcal, internalizaram o ideal que lhes reserva o sistema de dominação: na melhor das hipótese, a condição de “bela, recatada e do lar”.

Também não pode ser desconsiderado o sentimento de “usurpação” daqueles que, cada vez mais impotentes, querem preservar o único “privilégio” que lhes resta: o de serem homens. Homens impotentes, ao longo da história, disfarçaram essa impotência, e o correlato medo do sujeito-político “mulher”, com a agressividade machista ou com a versão cínica dessa agressividade (o que chamam de “brincadeiras de homens”).

Ao olhar com mais atenção às agressões dirigidas contra as mulheres, e as direcionadas à Marcia em particular, ficou claro para mim que, enquanto a ideologia patriarcal persistir, quanto maiores forem as conquistas coletivas do movimento feminista e mais significativas as conquistas pessoais de cada mulher (e no caso das mulheres negras, isso fica ainda mais evidente), maior será o ódio direcionado a elas.

Ódio que parte tanto de homens quanto de mulheres (impressionante, para o olhar estrangeiro de um homem, que mulheres gastem mais tempo atacando outras mulheres do que preocupadas em superar o sistema de dominação construído pelo e para o homem branco que se identifica com os paradigmas europeus). Ódio que vem acompanhado de violência moral, de caráter sexista, que aparece exteriorizado em xingamentos que, em regra, se referem à sexualidade feminina. Como lembrou a poeta Alice Ruiz em recente entrevista, a mulher é normalmente chamada de “piranha”, “puta”, “histérica”, “vaca”, “vagamundo” e, não raro, sobra até para as respectivas mães. Xingamentos que dizem muito mais de quem os faz do que daquelas a quem essas agressões são dirigidas.

No campo acadêmico, não é muito diferente, a inveja, o ressentimento e o sentimento de ter sido “usurpado” de uma posição de poder faz com que mulheres intelectuais tenham que conviver com ataques que buscam desqualifica-las e às suas pesquisas. Mulheres brilhantes, durante toda a história do pensamento, foram desqualificadas como “burras”, “loucas” ou “despreparadas”, quando não silenciadas ou invisibilizadas.

No caso da Márcia e da Djamila Ribeiro, para citar apenas duas mulheres que assumiram a posição de intelectuais públicas (outro conceito mal compreendido em um Brasil que glorifica a ignorância), alguns ataques poderiam ser cômicos, se não fossem o trágico retrato de um país que não valoriza o conhecimento e as mulheres: pessoas com produção acadêmica insignificante ou que são incapazes de entender textos, deslocamentos de sentido e falas mais complexas ou sensíveis sentem-se autorizados a tentar desqualificar a obra e as posturas públicas das duas; posturas, vale dizer, sempre comprometidas com a construção de uma sociedade mais justa. Mas, não é só. Mulheres que atuam como intelectuais e procuram o diálogo com a sociedade são atacadas também por outros intelectuais movidos pelo ódio que esconde a inveja, a impotência e o medo de falar para além dos limites da academia.

Por evidente, meu local de fala (outro conceito fundamental da epistemologia feminista) não me permite ir além de expor o que apreendi e o estranhamento que ainda sinto diante de conceitos e categorias que, por não serem adequadamente compreendidos, ainda são demonizados. Nunca senti, e nem vou sentir, a dor (“e a nem sempre delícia”, diria a Vilma Piedade a partir da letra de Caetano Veloso) de ser marcada como mulher, uma dor que homens e até muitas mulheres preferem fingir que não existe. Mas, por experiência própria, posso afirmar que é possível aprender com as pessoas que produzem conhecimento e práticas a partir dessa dor e que mostram, todos os dias, da luta contra a desigualdade doméstica à luta pela redução da violência de gênero, que vale a pena lutar.

Casei com uma feminista

Performance de Marina Abramovic e Ulay, "Relação no tempo", em 1977 (Reprodução/ Arte Revista CULT)

Para Marcia Tiburi, com amor.
Para Lili, Schuma, Vilma e todas as que lutam


RUBENS CASARA é juiz de Direito do TJRJ, escritor, doutor em Direito e mestre em Ciências Penais. É professor convidado do Programa de Pós-Graduação da ENSP-Fiocruz, membro da Associação Juízes para a Democracia e do Corpo Freudiano

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