Crônica de 100 mil mortes anunciadas. Por Antonio Prata |
Comportamento | |||
Dom, 09 de Agosto de 2020 01:44 | |||
Cem mil mortos: ontem, hoje ou amanhã. Cem mil mortos e seguimos contando os corpos que não podemos velar. Mais de mil por dia. Dez vezes cem, da manhã à noite. Cem vezes mil, de março a agosto.
Era óbvio, mas segue sendo surpreendente que um presidente eleito hasteando a bandeira da morte nos entregue, vejam só, a morte. Prometeu 30 mil cadáveres para resolver o Brasil, nos entregou três vezes isso em meses: e seguimos contando os corpos. Cem mil de Covid, outras dezenas de milhares de bala, de acidente de carro, de burrice, de séculos de descalabros culminando nos desvarios de um ser humano decrépito apavorado com a sombra da própria masculinidade. Um eunuco existencial arrotando priapismo. Atrás de mim, na televisão, Caetano Veloso canta cercado pelos filhos. "Tigresa", "Um Índio", "Pulsar", "Odara". Tudo é "divino, maravilhoso", mas me soa a um réquiem para um país defunto, de projetos defuntos, de esperanças defuntas, com uma autoimagem defunta. Parece o "Canto do povo de um lugar" há muito extinto. "O sonho acabou, quem não dormiu em sleeping-bag nem sequer sonhou". "A tristeza é senhora". Assisto à live do Caetano como se fosse o "Sermão da Montanha". Aguardo um norte. Uma revelação. Mas quando ele canta as incompetências da América católica (ou neopentecostal), onde "cada paisano e cada capataz", que "com sua burrice fará jorrar sangue demais" e "sempre precisará de ridículos tiranos", dói. E quando canta as maravilhas do que já aspiramos a ser, do que já pudemos e poderíamos ser —"os hermetismos pascoais, os tons, os mil tons, seus sons e seus dons geniais"— dói ainda mais. Cem mil mortos: ontem, hoje ou amanhã. Cem mil mortos e seguimos contando os corpos que não podemos velar. Mais de mil por dia. Dez vezes cem, da manhã à noite. Cem vezes mil, de março a agosto.
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Última atualização em Seg, 10 de Agosto de 2020 04:56 |
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