"Ao meu sentir..." (sic), o processo do estupro de SC é nulo, írrito...! Por Lenio Luiz Streck |
Comportamento | |||
Sáb, 07 de Novembro de 2020 06:47 | |||
![]() Sim, ao sentir dele, porque, mais adiante, diz que decide assim por livre convencimento. Não está na hora de falar sobre isso? Só aqui já temos um problema que é a ferida narcísica da dogmática jurídica. 1. É possível analisar a decisão ignorando a humilhação da moça? Explico: Dizer "ah, aconteceu tudo isso, mas o juiz acertou" é como dizer que, "tirante os estupros, o médico Roger A (que pegou 260 anos de prisão) era um bom sujeito". Não fossem as torturas, prisões, a ditadura até que... Hitler não era um mau sujeito. Tirando o antissemitismo, o racismo, o autoritarismo, a violência, os campos de concentração... pintava bons quadros e cuidava dos gatinhos, ouvi dizer. Não fosse aquilo... Aos fatos. A história todos já conhecem: moça de 21 anos alega ter sido estuprada em estado de vulnerabilidade. O Ministério Público assim denunciou. O réu chegou a ser preso. Segundo a sentença, não foi provado que havia vulnerabilidade. Estavam presentes, todavia, provas de esperma do réu e sangue da vítima, que alega ter sido desvirginizada. Não vou examinar a decisão sob o prisma da correção ou da incorreção. Há algo que contamina todo o feito. Por isso, discordo de que seja possível isolar a sentença e dizer "o juiz não errou ou o juiz errou". Uma sentença só é sentença em seu todo. Você não separa algo daquilo que é condição-de-possibildiade-de-algo. Abstraia a sentença do conjunto e você não tem mais sentença. Não há subtilitas intelligendi, explicandi e applicandi: há, sim, apenas Applicatio! Não se lê, não se interpreta e não se julga em fatias. Por que digo isso? Porque vi o vídeo. Dá inveja aos filmes trash americanos sobre júri. Advogado do réu humilhou a vítima. Foi estupro moral. E, por terem visto tudo aquilo e nada terem feito, juiz e promotor se tornaram suspeitos. Porque, ao nada fazerem para impedir o massacre da vítima, concordaram por omissão — provavelmente porque já tinham formado seu "livre convencimento" de que o réu deveria ser absolvido. Juiz não é responsável pela audiência, afinal? Assim, a sentença jamais poderia ter sido exarada por esse juiz. Nem as alegações poderiam ser feitas pelo promotor. Simples assim. 2. A nulidade desde a primeira 'pegada" do causídico e cuidado com a armadilha Por isso, afirmo que quem diz que a sentença está correta está caindo em uma armadilha — uma contradição secundária do problema. Com o que se viu, o processo é nulo, írrito e nenhum, ao menos a partir daquele momento processual. Você não separa a parte do todo quando não há parte sem o todo. Foi tão terrível o episódio que o Ministro Gilmar Mendes postou no Twitter que o sistema de justiça não pode ser instrumento de tortura e que os órgãos correcionais devem ser acionados, inclusive para verificar a omissão. Corretíssimo. 3. O "sentir do juiz" e por que "o sistema acusatório não quer dizer 'abrir um ringue' e deixar a parte mais fraca apanhar" 4. Pequena anamnese Como referi, o problema deste caso é outro, porque há uma nulidade incontornável: a forma como foi submetido o "interrogatório" da vítima. Digo interrogatório porque me pareceu, naquele momento, que ela é que estava sofrendo todas as agruras do processo penal na condição de acusada. Os questionamentos lançados pela defesa tiveram alto grau de misoginia e pré-juízos típicos de pensamentos altamente conservadores e fundamentalistas (para ser elegante nas adjetivações). Isso só não foi pior que o silêncio constrangedor do Ministério Público e do juiz. Aliás, no caso do TJ-SP, recente, também ali o MP se quedou silente. O que há com o MP? O Ministério Público é, bem, Ministério Público. Não é parte. É instituição. O caso do juiz é ainda mais grave, pois deveria presidir o ato e impedir o tratamento degradante conferido à vítima, o que denota a falta de imparcialidade deste no conduzir da causa (assim como do MP). 5. O tal "estupro culposo" fruto de citação "prenhe de vazio" Mas aí pode haver mais coisa. Nenhuma palavra escapa ilesa. Explico: ao fazer referência a um livro que diz que "não há estupro culposo", o juiz pode ter caído em uma implicatura de Paul Grice (quando se fala, diz-se muito implicitamente!). Ou, como dizia John Austin (o linguista), o juiz fez coisas com palavras (desnecessárias). Parece aí haver um perlocucionarismo implícito. Um fator Grice-Austin. Ao não dizer, disse, mesmo que não quisesse dizer e, no entanto... e produziu coisas... Basta ver por aí. Há muito que é dito no não dito. E, não de novo, a sentença não pode ser analisada isoladamente e, assim, ser "salva" do circo dos horrores da audiência. Está envenenada. A sentença sem aquilo que lhe antecede é uma girafa de pescoço curto. Já não é mais uma girafa. Observação a latere: se o juiz defende o acusatório, a ponto de dizer que, se o MP pede absolvição, o juiz tem de atender, então não é esse o sistema acusatório que democratas devem seguir. Explico: sistema acusatório quer dizer mais democracia, menos autoritarismo. Jamais uma inércia, deixando a vítima levar uma surra. Ou seja: se o sistema acusatório é esse da audiência, então "me incluam fora dessa". Outra vez: o grande absurdo jurídico do caso foi a condução da audiência, que deve ser anulada — por evidente, assim como todos os atos posteriores, incluindo a sentença — seja em função de uma suspeição do magistrado, pela sua conivência com a degradação moral da vítima, seja em razão da violação do princípio da dignidade da pessoa humana. Enfim, foi um filme trash. Mas todos vimos o zíper da roupa do monstro. Como se sabe, um filme trash é feito a sério; porém, o diretor esquece de esconder a fantasia do monstro — como em Tomates Assassinos, dava para ver o zíper...! Mas o ponto é que vimos o zíper. E agora? Vamos fingir que não vimos, e o show deve continuar, e "o juiz está certo"? E, ainda: Triste. E parece que — e vejam, quem diz isso é um otimista — estamos lascados. Já não tem volta. Já tinha ouvido uma desembargadora dizer, com orgulho, que jamais tinha concedido liminar em HC; já vi prisão de ofício no bojo de HC... vi e vejo tanta coisa... Eles venceram. Pirro venceu! Uma frase final: no relatório da sentença, o juiz... não fez constar nada, nada mesmo do que aconteceu! Nem o MP em suas alegações. Só para deixar bem claro! Artigo publicado originalmente em https://www.conjur.com.br/2020-nov-05/senso-incomum-meu-sentir-sic-processo-estupro-sc-nulo-irrito
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Última atualização em Sáb, 07 de Novembro de 2020 06:52 |
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