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Nossa região é o reino dos paradoxos, Por Eduardo Galeano
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Cidadania
Sex, 11 de Julho de 2008 12:07
Brasil, peguemos caso a caso: Paradoxalmente, Aleijadinho, o homem mais feio do Brasil, criou as mais altas belezas da arte da época colonial; paradoxalmente, Garrincha, arruinado desde a infância pela miséria e pela poliomielite, nascido para a infelicidade, foi o jogador que mais alegria deu em toda a história do futebol; e, paradoxalmente, já cumpriu cem anos de idade Oscar Niemeyer, que é o mais novo dos arquitetos e o mais jovem dos brasileiros. Peguemos o caso da Bolívia: em 1978, cinco mulheres voltearam uma ditadura militar. Paradoxalmente, toda a Bolívia riu delas quando iniciaram sua greve de fome. Paradoxalmente, toda a Bolívia terminou jejuando com elas, até que a ditadura caiu.

Eu conheci uma dessas cinco obstinadas - Domitila Barrios - no povoado mineiro de Llallagua. Em uma assembléia de operários das minas, todos homens, ela se levantou e fez todos se calarem.

- Quero lhes dizer isto - disse. Nosso inimigo principal não é o imperialismo, nem a burguesia, nem a burocracia. Nosso inimigo principal é o medo, e o levamos dentro de nós.

E anos depois reencontrei Domitila em Estocolmo. Tinha sido expulsa da Bolívia e ido para o exílio com seus sete filhos. Domitila estava muito agradecida pela solidariedade dos suecos, cuja liberdade admirava, mas eles lhe davam pena, tão solitários que estavam, bebendo sozinhos, comendo sozinhos, falando sozinhos. E lhes dava conselhos:

- Não sejam bobos - lhes dizia. Nós, lá na Bolívia, nos juntamos. Ainda que seja para brigar, nos juntamos.

E como tinha razão.

Para quê, digo eu, existem os dentes se não se juntam na boca?, existem os dedos se não se juntam na mão?

Juntarmos: e não apenas para defender o preço de nossos produtos, mas também, e sobretudo, para defender o valor de nossos direitos. Estão bem juntos, embora de vez em quando simulem rixas e disputas, os poucos países ricos que exercem a arrogância sobre todos os demais. Sua riqueza come pobreza, e sua arrogância come medo. Faz bem pouco tempo, peguemos este caso, a Europa aprovou a lei que converte os imigrantes em criminosos. Paradoxo dos paradoxos: a Europa, que durante séculos invadiu o mundo, bate a porta na cara dos invadidos quando retribuem a visita. E essa lei foi promulgada com uma assombrosa impunidade, que seria inexplicável se não estivéssemos acostumados a ser comidos e a viver com medo.

Medo de viver, medo de dizer, medo de ser. Esta nossa região faz parte de uma América Latina organizada para o divórcio de suas partes, para o ódio mútuo e a mútua ignorância. Mas, somente estando juntos seremos capazes de descobrir o que podemos ser, contra uma tradição que nos adestrou para o medo e a resignação e a solidão e que a cada dia nos ensina a nos desquerermos, a cuspir no espelho, a copiar em lugar de criar.

Durante toda a primeira metade do século XIX, um venezuelano chamado Simon Rodríguez, andou pelos caminhos de nossa América, no lombo de mula, desafiando os novos donos do poder:

- Vocês - clamava dom Simon - vocês que tanto imitam os europeus, por que não os imitam no mais importante, que é a originalidade?

Paradoxalmente, ninguém dava ouvidos a este homem que tanto merecia ser ouvido. Paradoxalmente, o chamavam de louco, porque tinha o bom senso de acreditar que devemos pensar com nossa própria cabeça, porque tinha o bom senso de propor uma educação para todos e uma América de todos, e dizia que aquele que não sabe é enganado por qualquer um e que aquele que nada tem é comprado por qualquer um. Porque tinha o bom senso de duvidar da independência de nossos países recém-nascidos:

- Não somos donos de nós mesmos - dizia. Somos independentes, mas não somos livres.

Quinze anos depois da morte do louco Rodríguez, o Paraguai foi exterminado. O único país hispano-americano verdadeiramente livre foi paradoxalmente assassinado em nome da liberdade. O Paraguai não estava preso na jaula da dívida externa porque não devia um centavo a ninguém, e não praticava a mentirosa liberdade de comércio, que nos impunha e nos impõe uma economia de importação e uma cultura de impostação.

Paradoxalmente, ao cabo de cinco anos de uma guerra feroz, entre tanta morte sobreviveu a origem.

Segundo a mais antiga de suas tradições, os paraguaios nasceram da língua que os nomeou, e entre as ruínas fumegantes sobreviveu essa língua sagrada, a língua primeira, a língua guarani. E em guarani falam ainda os paraguaios na hora da verdade, que é a hora do amor e do humor. Em guarani, ñeñé significa palavra e também significa alma. Quem mente a palavra, trai a alma. Se te dou minha palavra, me dou.

Um século depois da guerra do Paraguai, um presidente do Chile deu sua palavra, e se deu.

Os aviões cuspiam bombas sobre o palácio do governo, também metralhado pelas tropas de terra. Ele disse:

- Eu daqui não saio vivo.

Na história latino-americana é uma frase freqüente. Foi pronunciada por uns quantos presidentes que depois saíram vivos para continuar pronunciando-a. Mas essa bala não mentiu. A bala de Salvador Allende não mentiu.

Paradoxalmente, uma das principais avenidas de Santiago do Chile se chama, ainda, Onze de Setembro. E não se chama assim pelas vítimas das Torres Gêmeas de Nova York. Não. Tem esse nome em homenagem aos verdugos da democracia no Chile. Com todo o respeito por esse país que amo me atrevo a perguntar, por puro senso comum: não estaria na hora de mudar o nome? Não estaria na hora de chamá-la Avenida Salvador Allende, em homenagem à dignidade da democracia e à dignidade da palavra?

E, pulando a cordilheira, me pergunto: Por que será que Che Guevara, o argentino mais famoso de todos os tempos, o mais universal dos latino-americanos, tem o costume de continuar nascendo? Paradoxalmente, quanto mais o manipulam, quanto mais o traem, mais nasce. Ele é o mais nascedor de todos.

E me pergunto: não será porque ele dizia o que pensava e fazia o que dizia? Não será por isso que continua sendo tão extraordinário neste mundo onde as palavras e os fatos muito raramente se encontram, e quando se encontram não se cumprimentam porque não se reconhecem?

Os mapas da alma não têm fronteiras, e eu sou patriota de várias pátrias. Mas quero culminar esta pequena viagem pelas terras da região evocando um homem nascido, como eu, aqui pertinho.

Paradoxalmente, ele morreu há um século e meio, mas continua sendo meu compatriota mais perigoso. Tão perigoso que a ditadura militar do Uruguai não pôde encontrar uma única frase sua que não fosse subversiva e teve que decorar com datas e nomes de batalhas o mausoléu que ergueu para ofender sua memória.

A ele, que se negou a aceitar que nossa pátria grande se rompesse em pedaços; a ele, que se negou a aceitar que a independência da América fosse uma emboscada contra seus filhos mais pobres; a ele, que foi o verdadeiro primeiro cidadão ilustre da região, dedico esta distinção, que recebo em seu nome.

1820, Paso del Boquerón. Sem virar a cabeça, afunda no exílio. O vejo, estou vendo-o: desliza do Paraná com a agilidade de um lagarto e se afasta flamejando seu poncho esfarrapado, ao trote do cavalo, e se perde na mata. Diz adeus à sua terra. Ela não queria acreditar. Ou, talvez, não soubesse ainda que partiria para sempre.

Se acinzenta a paisagem. Vai, vencido, e sua terra fica sem alento. Lhe devolverão a respiração os filhos que lhe nascerem, os amantes que chegarem? Os que desta terra brotem, os que nela entrem, serão dignos de tristeza tão profunda?

Sua terra. Nossa terra do sul. Lhe será muito necessário, don José. Cada vez que os ambiciosos a lastimarem e a humilharem, cada vez que os tontos a considerarem muda ou estéril, lhe fará falta. Porque o senhor, don José Artigas, general dos simples, é a melhor palavra que ela pronunciou.

Na semana passada, o Mercosul homenageou o jornalista e escritor Eduardo Galeano com o titulo de Cidadão Ilustre do Mercosul pelo incentivo que presta à cultura, à identidade latino amerciana e à integração regional. Durante a homenagem, Galeano apresentou este texto.

"Os mapas da alma não têm fronteiras"

Matéria no site de Luiz Carlos Azenha:
<http://www.viomundo.com.br/denuncias/conceicao-lemes-aldo-vicentin-mais-uma-vitima-do-amianto/>

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