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Marx, pelo livre-comério, contra o protecionismo. Por Paulo Henrique de Almeida
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Meio Ambiente & Sustentabilidade
Ter, 22 de Abril de 2008 07:38
Do mesmo modo que o capitalismo real, o socialismo imaginado por Marx não pode dispensar as tecnologias mais avançadas e a plena utilização dos recursos do planeta.
Eis porque, segundo Marx, o socialismo, ou melhor, o que ele chama de "primeira fase do comunismo", pressupõe o atendimento de dois pré-requisitos ainda nos marcos da evolução da produção capitalista.

O primeiro é o desenvolvimento das forças produtivas, assegurado pela aceleração do progresso técnico sob o capitalismo. O progresso técnico, que resulta da concorrência entre os capitais, é, para Marx, o fundamento do impulso inicial da grande indústria durante os séculos XVIII e XIX. Ele engendra a máquina, a fábrica e o proletariado industrial. Ele implica o desenvolvimento da produtividade do trabalho e estabelece, por conseqüência, as bases materiais necessárias à construção de uma nova sociedade humana, nova utopia, fundada na riqueza, e não mais, como imaginavam os "socialistas utópicos", na distribuição igualitária de recursos limitados.

Marx pertence a uma geração de socialistas que acompanha a revolução industrial, que está hipnotizada pelas conquistas da técnica de então e que crê na possibilidade da abundância - isto é, no fim da escassez. Essa geração abandona a idéia de um socialismo na austeridade, que é típica das utopias mais ou menos ascéticas (ou espartanas) anteriores à revolução industrial, do tipo das de More, Mably ou Babeuf. Ao contrário, ela desenvolve uma concepção de socialismo, já presente no pensamento de autores como Saint-Simon ou Cabet, que é erguida sobre a proposição da "igualdade na abundância".

Esse novo ponto de vista sobre o socialismo pode ser explicado. No século XIX, as noções de crescimento e desenvolvimento econômico já são inseparáveis da idéia de progresso social. Para os socialistas da época de Marx, a sociedade futura supõe não somente o fim da exploração do trabalho e da miséria das massas, mas também a supressão da escassez "relativa", vale dizer, da penúria de todos os bens que são reprodutíveis.

Eles imaginam que a máquina a vapor, a estrada de ferro e a química de sua época podem resolver o essencial dos problemas no plano da produção social. Nesse sentido, para muitos socialistas do século XIX, uma sociedade fundada na abundância é possível porque ela depende, sobretudo, de novas condições de distribuição, ou, mais precisamente, da apropriação social da riqueza potencial já anunciada pelo progresso técnico sob o capitalismo.

Assim, também para Marx, é o desenvolvimento das forças produtivas que permite o socialismo. Como ele próprio afirma desde muito cedo:

[...] este desenvolvimento das forças produtivas é uma condição prática absolutamente indispensável, pois sem ele é a penúria que se tornaria geral, e, com a necessidade, é também a luta pelo necessário que recomeçaria, e se cairia fatalmente no mesmo velho estrume. 

Acrescentemos: para Marx, o desenvolvimento das forças produtivas sob o capitalismo exige a escala planetária.

Seguindo proposições de David Hume e Adam Smith, Marx vai reconhecer que a constituição do mercado mundial, iniciada com a expansão colonial da época mercantilista, é não só o resultado, mas também a fonte de progresso da indústria sob o capitalismo.

De um lado, permitindo a expansão do comércio, o mercado mundial favorece o desenvolvimento da escala de produção e o acesso a matérias-primas mais baratas; isso torna possível a redução dos custos de produção e viabiliza, numa economia concorrencial, a extensão dos mercados.

De outro, na medida em que permite a unificação econômica do mundo, o mercado mundial significa a destruição da antiga agricultura camponesa e da indústria a domicílio em todo o planeta, que desaparecem esmagadas pela concorrência das mercadorias mais baratas fabricadas pelos países já industrializados. Resultado último: o mercado mundial acaba por impor, em todos os lugares, a grande indústria e o assalariamento generalizado.

A escala planetária do desenvolvimento das forças produtivas capitalistas determina a imposição de relações universais à humanidade, pois "[...] o isolamento primitivo das nações individuais é destruído pelo modo de produção aperfeiçoado pela circulação e divisão do trabalho entre as nações [...]".

A própria aparição do proletariado - a classe social que poderia erguer uma nova sociedade - é também um fenômeno internacional: o proletariado é uma classe mundial. Se é certo que a afirmação do trabalho assalariado resulta inicialmente do progresso técnico e do desenvolvimento da grande indústria, este progresso e este desenvolvimento, têm, por sua vez, um caráter global. Nessa perspectiva, o proletariado é o produto da construção do mercado planetário e do estabelecimento de uma "concorrência universal", pois este mercado e esta concorrência engendram "simultaneamente em todos os países" o fim das formas primitivas de trabalho. Em outros termos, diz Marx, o proletariado "supõe o mercado mundial". E esse fato tem conseqüências importantes:

[...] o proletariado só pode existir como força histórica e mundial, do mesmo modo que o comunismo, ação do proletariado, só é concebível como realidade `histórica e mundial'; existência histórica e mundial dos indivíduos, vale dizer que estes indivíduos levam uma existência que se amarra diretamente à história universal.

A segunda condição prévia para o socialismo é assim a divisão internacional do trabalho, isto é, o estabelecimento do mercado mundial.

Resumamos o ponto de Marx sobre essa questão. O desenvolvimento das forças produtivas em escala universal, nos marcos do mercado mundial capitalista, leva a divisão social do trabalho ao seu limite capitalista e incrementa de um modo até então desconhecido a produtividade do trabalho social. Isso significa dizer que este desenvolvimento engendra a interdependência econômica dos homens, dos povos e das nações e que ele conduz, graças à concorrência, à homogeneidade (sob a forma capitalista) da economia planetária. Segundo Marx, a interdependência e a homogeneidade econômicas do mundo são, respectivamente, a condição "sine qua non" e a condição "absolutamente indispensável" do novo modo de produção.

Para Marx, o capitalismo tem assim uma missão, que é preparar as bases objetivas do socialismo: a grande indústria, o mercado mundial, o proletariado enquanto classe universal. Marx o afirma várias vezes. Citemos, por exemplo, esta passagem de um dos seus artigos mais conhecidos:

O período burguês da história tem por missão criar a base material do mundo novo, de uma parte, a intercomunicação universal fundada sobre a dependência mútua da humanidade e os meios desta intercomunicação; de outra parte, o desenvolvimento das forças de produção do homem e a transformação da produção material em uma dominação científica dos elementos. A indústria e o comércio burgueses criam as condições materiais de um novo mundo da mesma maneira que as revoluções geológicas criaram a superfície da terra. Quando uma grande revolução social tiver controlado essas realizações da época burguesa, o mercado mundial e as modernas forças de produção, e as tiver submetido ao controle comum dos povos mais avançados, somente então o progresso humano deixará de parecer com essa horrível ídola pagã que só queria beber o néctar no crânio das vítimas.

Ora, se assim é, o socialismo supõe realmente o desenvolvimento do capitalismo, ou, para ser mais preciso, ele supõe a maturidade do capitalismo. Pierre Rosanvallon não está inteiramente errado quando nota que, para Marx:

O capital só pode ser superado a partir do seu triunfo absoluto [...]. Ele só concebe o comunismo, portanto, como a conclusão do processo histórico que o capitalismo já porta: assim que empobrecimento da massa da humanidade coincidir com um desenvolvimento das forças produtivas que permita realizar a abundância. Marx considera assim explicitamente que é do pleno sucesso econômico capitalista que depende a possibilidade de sua abolição. [...] Se o capitalismo não cumprisse sua missão histórica, se ele não levasse às portas da abundância, o comunismo se tornaria impossível.

Uma interpretação hiperbólica? Rosanvallon não exagera um pouco quando insiste sobre a necessidade de um sucesso "completo" do capitalismo - segundo a teoria revolucionária elaborada por Marx? Talvez. Lembremos em todo caso que uma das fórmulas mais célebres de Marx é a que afirma: "uma formação social não desaparece antes que se tenham desenvolvido todas as forças produtivas para as quais ela abre espaço". Bem entendido, essa fórmula não se aplica a um Estado isolado. Trotsky e outros lembraram que Marx a propõe com os olhos na evolução do capitalismo no plano mundial. 

O problema, nessa perspectiva, está em outro ponto: para Marx, o capitalismo já era um sistema economicamente maduro, ou "plenamente bem-sucedido", ao final do século XIX. A prova, segundo o filósofo: as estruturas sociais e políticas, que continuavam nacionais, já se tornavam obstáculos para o desenvolvimento das forças produtivas mobilizadas pelo capital. Estas exigiam um campo de ação globalizado. Daí, aliás, a necessidade de uma revolução na escala internacional.

Insistamos. De acordo com Marx, esse campo de ação - o mercado mundial - já está verdadeiramente estabelecido no século XIX? Sim, responde o filósofo-economista alemão, pelo menos "em suas grandes linhas":

A verdadeira missão da sociedade burguesa é criar o mercado mundial, pelo menos em suas grandes linhas, assim como uma produção condicionada pelo mercado mundial. Como o mundo é redondo, esta missão parece concluída desde a colonização da Califórnia e da Austrália e abertura do Japão e da China.

 No que concerne ao caráter internacional do modo de produção capitalista, o pensamento de Marx continua tributário do de Smith e Ricardo. Como Smith e Ricardo, Marx (que via o mundo do ponto de vista de Londres) se espanta com a extensão mundial do comércio e da nova indústria. Do mesmo modo que os precursores da Escola inglesa, ele constata que o capitalismo não é um fenômeno nacional, mas sim um modo de produção internacional, e mesmo cosmopolita. Ele também admite que a economia capitalista marcha na direção de uma déterritorialisation progressiva. E pensa que a época da correspondência entre o espaço político moderno (o território do Estado nacional) e o espaço econômico (o mercado) é passada. O mercado, pensa Marx, desenvolvendo-se sob o capitalismo, tornou-se mundial, isto é, sem fronteiras. Sobre este ponto o Manifesto Comunista de 1848 é de uma clareza absoluta:

Explorando o mercado mundial, a burguesia deu uma forma cosmopolita à produção e ao consumo de todos os países. Para o grande pesar dos reacionários, ela tirou da indústria sua base nacional. As velhas atividades nacionais são destruídas, ou o serão logo. Elas são destronadas pelas novas indústrias, cuja adoção se torna uma questão vital para todas as nações civilizadas, e que empregam matérias- primas oriundas, não mais do interior, mas das regiões mais distantes. Os produtos industriais são consumidos não somente no próprio país, mas em todas as partes do mundo. As antigas necessidades, satisfeitas por produtos nacionais, dão lugar as que exigem produtos de países e climas longínquos para sua satisfação. O antigo isolamento e a autarcia local e nacional dão lugar a um tráfico internacional, uma interdependência universal das nações.

 E o Manifesto afirma ainda que, nesse sentido, a tarefa do proletariado é terminar a obra iniciada pela burguesia:

As particularidades nacionais e os contrastes entre os povos desaparecerão cada vez mais com o próprio desenvolvimento da burguesia, a liberdade do comércio, o mercado mundial, a uniformidade da produção industrial e as condições de existência que lhes correspondem. "A dominação do proletariado os fará desaparecer mais rápido ainda. A ação em conserto do proletariado, pelo menos nos países civilizados, é uma das primeiras condições para sua emancipação Se para Marx o capitalismo é um modo de produção cosmopolita que torna anacrônicas as antigas fronteiras dos mercados nacionais, o socialismo, por sua vez, só pode ser um sistema construído na escala universal. Isso decorre da própria lógica da interpretação materialista da história: o socialismo só pode ser um modo de produção superior ao capitalismo. Ele supõe não somente um nível mais desenvolvido das técnicas, mas também uma divisão internacional do trabalho plenamente estabelecida.

Do ponto de vista de Marx, essa premissa impõe duas conclusões importantes. Em primeiro lugar, a transformação revolucionária do capitalismo deve ser prevista como um processo que engloba, simultaneamente ou quase ao mesmo tempo, todos ou quase todos os países capitalistas mais avançados. "O comunismo só é empiricamente possível como o ato `súbito' e simultâneo dos povos dominantes [...]".

Já sublinhamos esse ponto. De acordo com Marx, o desenvolvimento capitalista engendra ao mesmo tempo a interdependência entre as economias nacionais e a homogeneidade das sociedades nacionais. Daí a repercussão inevitável de uma revolução inicialmente nacional sobre os outros países do globo. O modelo, explícito, é o das revoluções européias de 1848.

Notemos ademais que se a coexistência entre Estados socialistas do futuro (desenvolvidos) e países pré-capitalistas (ou não- desenvolvidos) pode ser imaginada, a mesma lógica exige que esta coexistência seja efêmera. Já sob o capitalismo, a interdependência e a homogeneidade dizem respeito também às relações entre países desenvolvidos e nações retardatárias. E mais: o socialismo seria para os retardatários, na hipótese de revoluções bem sucedidas na Europa, a única possibilidade de sair do atraso econômico e social.

O jovem Friedrich Engels resume estas proposições em 1847, um ano antes da publicação do Manifesto, num texto que teria inspirado este último.

 Esta revolução poderá ser realizável num só país? Não. Pelo simples fato de ter criado o mercado mundial, a grande indústria aproximou todos os povos do globo e notadamente as nações civilizadas, de sorte que cada povo depende do que se passa com os outros. Além disso, ela equalizou o desenvolvimento social de todos os países civilizados, a tal ponto que, em todos estes países, a burguesia e o proletariado se tornaram as duas principais classes da sociedade, e a luta entre estas duas classes está na primeira da ordem do dia. Eis porque a revolução comunista não será só nacional, mas se produzirá simultaneamente em todos os países civilizados, isto é ao menos na Inglaterra, na América, na França e na Alemanha. Ela se desenvolverá mais ou menos rapidamente em cada um desses países de acordo com o grau de desenvolvimento da sua indústria, do tamanho de sua riqueza, da massa de suas forças produtivas. [...] Ela terá as maiores repercussões sobre os outros países do mundo; ela mudará completamente e acelerará fortemente o ritmo de sua evolução. É uma revolução universal; será necessário para ela, por conseqüência, um terreno universal.

Em segundo lugar, ainda segundo o raciocínio de Marx, a hipótese de um Estado socialista comercialmente fechado deve ser descartada como uma conjectura absurda. Mesmo um economista ultra-liberal como Ludwig von Mises reconhece essa "superioridade" do pensamento de Marx em relação às proposições mais ou menos autárcicas dos primeiros socialistas utópicos (Fourier, Owen e outros). Von Mises tem absoluta razão quando escreve:

Na lógica do marxismo [Von Mises quer dizer de Marx] a questão se esta ou aquela nação está "madura" para o socialismo não pode nem ser colocada. O capitalismo torna o mundo maduro para o socialismo, não uma nação isolada ou uma indústria determinada. [...] Para o marxista, por conseqüência, o problema da autarcia da comunidade socialista não pode nem se apresentar. A única comunidade socialista que ele pode conceber compreende a espécie humana inteira e toda a superfície do globo. Para ele, a gestão econômica do mundo deve ser unitária.

Examinemos, na seqüência, o que Marx pensava sobre o livre-comércio. Vejamos como sua posição - de extrema-esquerda - é completamente distinta do nacionalismo econômico vulgar dos partidários contemporâneos, "trotskistas" ou "stalinistas", de uma utopia reacionária recorrente: o "socialismo em um só país".

Marx, pelo livre-comércio

Marx é, em princípio, favorável a liberalização do comércio internacional. Ele o afirma desde 1848 em seu Discurso sobre o livre- câmbio e ele mantém esse ponto de vista até o fim da sua vida, como lembra Engels no seu prefácio para a edição norte-americana do Discurso, publicada em 1888.

 Todavia, Marx se opõe radicalmente aos argumentos livre-cambistas de um Richard Cobden ou de um Jean-Baptiste Say. Ele não crê que a liberdade de comércio melhore as condições de vida da classe operária. Também não acredita que o livre-câmbio implique a fraternidade entre as nações. Para Marx, muito ao contrário, a liberdade de comércio é apenas um meio para aumentar a taxa de lucro industrial, na medida em que ela barateia os bens de subsistência necessários à força de trabalho e os elementos do "capital constante" (matérias-primas e máquinas). Além disso, o livre-câmbio só pode significar exploração internacional, pois no plano do comércio entre nações, não apenas a troca pode ser desigual, mas também a especialização das economias nacionais tende a provocar, por si mesma, a desigualdade.

Expliquemos esta última proposição. Marx, como escreve René Sandretto, admite, à maneira de Ricardo, que o comércio entre dois países em graus diferentes de desenvolvimento "[...] melhora a situação econômica de cada um no imediato, uma vez que permite [...] aumentar o consumo em cada país a um custo menor". No entanto, acrescenta Marx, graças à produtividade superior de sua economia, um país industrializado incorpora menos trabalho nas mercadorias que exporta, em comparação com o trabalho incorporado aos bens que ele importa de um país de economia atrasada. E são as quantidades de trabalho presentes nas mercadorias que "[...] dão a verdadeira medida do esforço produtivo, isto é, os verdadeiros sacrifícios consentidos por cada país". Isto significa, como afirma ainda Sandretto, que "[...] os termos de troca fatoriais (relação das quantidades de trabalho exigidas respectivamente pelas exportações e importações) são, assim, desfavoráveis ao país menos desenvolvido, que é "explorado" no plano das prestações mútuas em trabalho".

Marx lembra também que a tese ricardiana sobre os efeitos equalizadores do comércio exterior no que concerne o desenvolvimento não é verificável empiricamente. O comércio entre países com desenvolvimento desigual tende a reforçar uma divisão internacional do trabalho desigual. O livre-câmbio implica, de um lado, a afirmação de uma indústria global cada vez mais desenvolvida; de outro, a destruição das atividades industriais ou artesanais nos países retardatários. Estas não podem resistir à concorrência imposta pelas potências tecnicamente dominantes.

Marx se afasta, assim, do otimismo ricardiano no que diz respeito ao comércio internacional e pode dirigir aos livre-cambistas da Anti- Corn Laws League esta contestação virulenta:

 Se os livre-cambistas não podem compreender como um país pode enriquecer às custas de outro, nós não devemos nos surpreender com isso, pois estes mesmos senhores não querem compreender também como, no interior de um país, uma classe pode se enriquecer às custas de outra classe.

Nós poderíamos esperar desse posicionamento que Marx apoiasse o protecionismo, como o faz a maioria dos socialistas marxistas desde o final dos anos 1870. Mas ele não faz isso. Marx se opõe ao protecionismo do seu tempo porque ele o vê como um anacronismo. Para ele, o protecionismo industrial é apenas, em última instância, uma sobrevivência do antigo sistema mercantilista. Para Marx, o protecionismo é neo-mercantilismo; o livre-câmbio, diz ele, é o estado "normal" da produção capitalista depois da revolução industrial.

 Certo, podemos sempre lembrar que Marx distingue dos tipos de protecionismo. O primeiro diz respeito ao período da "acumulação primitiva", isto é, ao período mercantilista propriamente dito. Este protecionismo é um "[...] meio artificial de fabricar fabricantes, de expropriar os trabalhadores independentes, de converter em capital os instrumentos e condições materiais do trabalho, de abreviar à força a transição do modo tradicional de produção para o mundo moderno".

O segundo, aquele que surge após a revolução industrial, é somente uma "[...] necessidade temporária na luta da concorrência internacional".

Tanto faz. Para Marx, as duas formas são no fundo equivalentes, na medida em que levam aos mesmos resultados: "[...] quaisquer que sejam os motivos, as conseqüências [do protecionismo] restam as mesmas". Mas de quais conseqüências se trata? Marx responde no Discurso: o estabelecimento da grande indústria, que implica, obrigatoriamente, a dependência do mercado nacional em relação ao mercado internacional e, portanto, no longo prazo, a necessidade para a indústria nacional de se abrir ao livre-comércio. Ou, como afirma Engels, de um modo também explícito, se dirigindo aos industriais europeus em 1888:

[...] qualquer que seja a via que vocês escolherem, protecionismo ou livre-câmbio, o resultado não será mudado por isso; vocês só mudarão a duração do prazo que resta para vocês, até o resultado. Pois muito antes, o protecionismo terá se tornado um obstáculo insuportável para cada país que aspire, com alguma chance de sucesso, a uma posição independente no mercado mundial."

Eis porque segundo Marx e em tese, não serve para nada opor o protecionismo ao livre-câmbio, como não cansa de fazer a lógica binária da atual esquerda "marxista". Protecionismo e livre-comércio são dois caminhos paralelos que levam ao mesmo destino: à industrialização e, por conseguinte, à integração da economia nacional ao mercado mundial. Mas é preciso sublinhar: não serve para nada em teoria. No que se refere à prática política, sua posição é diferente: segundo Marx, é necessário se opor ao protecionismo e apoiar o livre-câmbio. Se o protecionismo é em última instância uma sobrevivência da era mercantilista, se o livre-comércio representa o estado "normal" e, sobretudo, o futuro do capitalismo industrial, é necessário, portanto, no plano da política, reconhecer que o primeiro é "conservador", enquanto o segundo é progressista. Progressista, pensa Marx, uma vez que só o livre-câmbio "[...] dissolve as antigas nacionalidades e impulsiona ao extremo o antagonismo entre a burguesia e o proletariado [...]", porque somente "[...] o sistema da liberdade comercial apressa a revolução social".

Expliquemos um pouco melhor esse posicionamento perturbador de Marx. Insistamos, inicialmente, sobre um ponto: toda sua obra econômica é atravessada por um discurso fortemente contrário à proteção. Marx critica não apenas os partidários da "proibição aduaneira" radical, tais como Ferrier, mas também aqueles que sustentam a idéia de um protecionismo simplesmente "educador" à maneira de List.

É necessário perceber no pensamento de Marx o pano de fundo do liberalismo, do qual ele é ao mesmo tempo crítico e tributário. Pierre Rosanvallon tem razão quando afirma que se Marx se pronuncia a favor do livre-câmbio "numa ótica radicalmente diferente da de Bastiat, por exemplo," isso não impede "que ao mesmo tempo, Marx continue prisioneiro de uma economia política clássica, que ele enxerga como "a expressão teórica exatamente adequada à natureza real da sociedade capitalista". Com efeito, "persistindo a tomar o capitalismo como a realização da ideologia liberal", Marx pensa que "o capitalismo só realiza seu `programa', sua missão histórica, se ele encarna a utopia liberal" O que significa dizer, neste caso concreto, que o livre-câmbio deve vencer para que a unificação econômica do planeta (isto é, a interdependência e a homogeneização econômicas sob o capitalismo) possa conduzir o mundo mais rapidamente para o comunismo.

Mas voltemos agora ao que é mais importante. Deriva do ponto de vista de Marx sobre o comércio internacional um corolário político maior: os socialistas, longe de se abster no debate sobre o protecionismo, devem, ao contrário, tomar uma posição clara em favor do livre-câmbio.

Em nosso conhecimento, existe apenas uma passagem na obra de Marx em que ele parece se contradizer. Trata-se de uma carta enviada a Engels, na qual Marx discute as relações entre a revolução proletária na Inglaterra e a questão nacional na Irlanda. Nesta carta, ele reconhece que a união da Irlanda à Grã-Bretanha (1801) teve como resultado a destruição da antiga indústria irlandesa. Defende então a idéia segundo a qual a independência política da Irlanda (reivindicada desde 1820 pelos irlandeses) deve ser completada pela criação "de tarifas protecionistas contra a Inglaterra".

Mas, neste caso, não se trata absolutamente de propor uma estratégia de desenvolvimento nacional para a Irlanda à maneira de List. O que interessa então a Marx é antes de tudo a revolução na Inglaterra. Ele pensava, anteriormente, que a resolução da questão irlandesa dependia da revolução socialista inglesa. Mas havia mudado de opinião, e acreditava nessa época (1867) que era a independência política e econômica da Irlanda que seria fundamental para acelerar o processo de emancipação do proletariado inglês. Não se trata tampouco de sugerir um "protecionismo socialista" ao modo bolchevique. Muito mais simplesmente, como lembra Maurice Barbier, sua posição sobre a questão confirma apenas "sua concepção instrumental da independência nacional, que não se justifica em si mesma, mas permanece subordinada às exigências da revolução [mundial]".

Como sabemos, o ponto de vista de Marx no que concerne o livre- comércio como bandeira estratégica foi abandonado pela maior parte dos socialistas "marxistas". Depois dos anos 1870 e para irritação de Engels, as proposições da maioria dos social-democratas se tornaram muito mais próximas de um List, e mesmo das concepções autárcicas de um Fichte, do que das teses do autor de O Capital. A capitulação da social-democracia européia ao nacionalismo que contribuiu para a guerra de 1914-1918, a vitória da tese do "socialismo em um só país" na URSS de Stalin, a adesão, nos países atrasados, dos comunistas às teses do nacional-desenvolvimentismo, a guerra fria, que leva estes mesmos comunistas a passarem do anti-imperialismo ao simples combate contra o capital e as importações norte-americanas, são uma sucessão de processos que levarão a emergência dessa figura muito estranha: o "marxista" ultra-protecionista do século XXI, inimigo jurado dos blocos de livre-comércio.

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