Como toleramos tamanha excrescência? Admitir que uma pessoa que aplaude torturadores seja nosso presidente porque fará reformas econômicas necessárias é como levar os filhos num pediatra sabidamente pedófilo porque é um médico competente. “Abusou do meu filho? Sim, abusou, é o jeitão dele, mas a febre, ó, baixou que é uma beleza!”.
A maior crise que enfrentamos, globalmente, não é a pandemia de coronavírus e nem a recessão mundial que ela provavelmente trará, ambas passarão: é uma crise de valores. Valores estes que os próprios ostrogodos que nos desgovernam fingem defender. O sujeito que repete como um papagaio “Brasil acima de tudo” incentiva manifestações no meio de uma pandemia e mesmo estando em quarentena, sai do palácio e dá a mão para centenas de aduladores. Coloca em risco, assim, a vida de milhares de brasileiros. O mesmo sujeito que repete como um autômato “Deus acima de todos” rasga os evangelhos toda vez que abre a boca ou faz arminha com a mão.
Escrevi na última crônica que a quarentena, turbinada pelas redes sociais e suas fake news, iria mandar o mundo de vez para a cucuia. Depois de dez dias em casa, porém, a sensação tem sido outra. É cedo pra fazer qualquer previsão, as notícias mudam a cada hora e ninguém sabe o que nos aguarda, mas existe uma chance de ouro de que este circuit breaker global faça com que paremos de correr como ratinhos numa roda de egoísmo e imbecilidade e nos dediquemos a alguma reflexão.
Precisamos repensar profundamente a sociedade. Não falo aqui da idade mínima para aposentadoria de tal ou tal categoria ou das alíquotas de imposto de renda desta ou daquela faixa de remuneração. Tais discussões são importantes, é claro, mas antes delas temos que recriar uma linha entre o que é tolerável e o que é intolerável. Antes dos marcos regulatórios, temos que estabelecer os marcos civilizatórios.
Por tudo que nos ameaça, 2020 pode entrar para a história como o pior ano das nossas vidas. O que significa que, depois dele, as coisas devem melhorar. Não se trata de otimismo, mas de instinto de sobrevivência. Se não trocarmos o ódio e a violência pela esperança e pelo amor, já, a humanidade não chega até a esquina. Tá ok?
Antonio Prata é Escritor e roteirista, autor de “Nu, de Botas”.
Artigo publicado originalmene em
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/antonioprata/2020/03/pandemia-da-imbecilidade.shtml?origin=uol