Mestiçagem brasileira foi processo popular. por Amtonio Risério |
Ter, 25 de Junho de 2019 23:13 |
Nossos movimentos negros – em suas variadas vertentes racialistas – exibem um quadro mental interessante. Regra geral, lemos Gilberto Freyre, aprendemos muitas coisas, apreciamos seus “insights”, incorporamos algumas de suas teses, discordamos de outras e seguimos adiante. Os racialistas neonegros, não: são os únicos que acreditam que tudo que o pensador pernambucano escreve é verdade absoluta. Quando o leem, claro – que a maioria o ataca sem conhecer sua obra, na base do típico mimetismo militante que tão bem conhecemos: ativistas menores repetindo mecanicamente o que dizem seus superiores.
Ou seja: a militância neonegra estacionou na obra de Freyre. Aceita como dogma o que ele diz, apenas invertendo os sinais: o que Freyre celebra, os neonegros condenam. Mas não questionam o grau de veracidade das afirmações categóricas do sociólogo. Assim, se Freyre louva a mestiçagem, os racialistas a estigmatizam. Mas não discutem se a descrição que Freyre faz do processo corresponde aos fatos. É uma espécie de sacralização às avessas. Vejamos. É óbvio que Freyre fala das mesclas genéticas entre brancos e índios, entre brancos e negros, entre pretos e índios, assim como, em pauta mais sociológica, da miscigenação envolvendo as diversas camadas sociais: senhores e escravos; pretos, indígenas e brancos pobres. Mas é igualmente certo que o que mais se projeta, dos escritos de Freyre, é a mistura genética entre senhores brancos e negras escravizadas. Trata-se de um recorte, ok. Mas acentuado ao extremo pelos nossos atuais racialistas neonegros, numa leitura seletiva dos textos do sociólogo (e isto é feito com diversos outros aspectos da obra freiriana; por exemplo, os ativistas neonegros fecham os olhos para não admitir que Freyre foi um dos pensadores brasileiros que mais vigorosamente descreveu e condenou a violência vigente na sociedade escravocrata). Nessa direção, Freyre privilegia a figura do macho senhorial branco emprenhando pretas. É uma miscigenação que se dá entre membros da camada social dominante e seres situados na base da hierarquia da sociedade escravista colonial. Mas a verdade é que não temos como aceitar que foi principalmente nesses termos que aconteceu a mestiçagem brasileira. Muitíssimo pelo contrário. Os senhores escravistas formavam um contingente mínimo da população que vivia no Brasil nos primeiros tempos coloniais. Mesmo que passassem o dia inteiro na cama, consumindo toneladas de afrodisíacos e fazendo sexo sem parar, não teriam como monopolizar ou sequer centralizar os relacionamentos sexuais interétnicos na sociedade que aqui se foi configurando. Outros estudiosos apontaram isso. Como o Sérgio Buarque de Holanda de “Raízes do Brasil”, chamando a atenção para o fato de que, já em Portugal, era grande a miscigenação envolvendo a população branca mais pobre (o “povo baixo”) e os escravos negros importados da África. E isto se repetiu na chamada América Portuguesa. Aqui, a quantidade de brancos pobres era muito superior à de senhores, obviamente. Todos os dados disponíveis revelam esta realidade demográfica. A classe senhorial dominante constituía um grupelho. A vasta maioria da população era composta de brancos pobres , índios e negros. E foi exatamente aqui, como não poderia deixar de ser, que a mestiçagem se processou em larga escala. Logo, a maioria das mesclas genéticas ocorreu em meio à maioria da população. Apenas para se ter uma ideia, relativa ao primeiro século da colonização, lembre-se a informação de que Thomé de Sousa trouxe para cá 600 soldados e 400 degredados. Eram quase todos bem pobres. Vejam-se ainda números fornecidos por Fernão Cardim, então presente em nossos trópicos, registrando que, na década de 1580, a Bahia contava com 36 engenhos, cada qual com o seu senhor, obviamente. É muito pouco senhor para o número de escravos necessários para a produção do açúcar. Nessa mesma época, Salvador e o Recôncavo teriam por volta de uns 15 mil habitantes (3 mil “vizinhos portugueses”, 8 mil “índios christãos”, 3 ou 4 mil “escravos de Guiné”). Para esses 15 mil moradores, além daqueles 36 senhores de engenho, tínhamos o governador, pelo menos um grande fazendeiro criador de gado bovino, alguns mercadores, o bispo e um punhadito de “officiaes e justiças de Sua Magestade”. Era muito pouco. Gabriel Soares, no “Tratado Descritivo do Brasil em 1587”, fala de pouco mais de 100 pessoas no topo da hierarquia social baiana. Enfim, a classe dominante nunca foi numericamente significativa. Mas o que quero realçar é que o grosso da mestiçagem se deu entre os grupos sociais subalternos ou dominados: entre brancos pobres, índios servis ou semisservis, e pretos escravos, livres ou libertos. Eram misturas se multiplicando na periferia pobre das vilas e cidades coloniais, nas pequenas lavouras, em quilombos, nos portos e comunidades pesqueiras, nas vizinhanças vegetais dos engenhos, em fazendas e fazendolas, nos múltiplos caminhos do povoamento do futuro país. E o mais importante: depois das miscigenações iniciais, a mestiçagem vai passar a se processar, evidentemente, em meio a uma população já maioritariamente mestiça, entre mamelucos, mulatos e cafuzos. É nesse contexto que Antonil, escrevendo ainda em 1711, poderá reproduzir um provérbio da época, dizendo que o Brasil era o inferno dos pretos, o purgatório dos brancos e o paraíso dos mulatos e das mulatas. Foi fora do círculo dos poderosos senhores escravagistas “que a mestiçagem medrou e se multiplicou”, escreve Mércio. Acrescentando: “...uma vez formadas as primeiras gerações de mestiços, a mestiçagem correu solta pelos campos e vilas”. Ou ainda: a mestiçagem “se desdobrou entre os novos mestiços e mestiças com índios e índias, e com negros e negras, tanto mais que, por esse processo e com intensidade espantosa, formou-se o segmento populacional mais amplo da sociedade colonial, constituindo o estamento social subordinado da futura sociedade brasileira”. É isso aí. E, para finalizar, quero fazer duas observações. A primeira para lembrar e sublinhar que, historicamente, o sentimento de ser brasileiro, ou de uma diferença nossa, com relação a Portugal, vai se enraizar e se espalhar, primeiramente, em meio à população mestiça que não ocupava o cimo da nossa hierarquia social, a exemplo daqueles mulatos que promoveram a chamada conspiração dos alfaiates, na Bahia setecentista. A segunda para, voltando a Freyre, assinalar algo que considero de alta relevância: Freyre combateu a ideia da inferioridade mental da raça negra e fez o elogio aberto da mestiçagem em momento contemporâneo ao da ascensão do nazismo na Europa – nazismo que, como se sabe, abominava e pretendeu banir as misturas genéticas, atacando implacavelmente tudo que fosse mestiço. Trata-se, portanto, de ver “Casa-Grande & Senzala”, entre outras e muitas coisas, como afirmação de uma postura antirracista brasileira no mundo. *Antonio Risério é antropólogo, poeta e romancista, autor de “A Utopia Brasileira e os Movimentos Negros” (Editora 34), “Que Você É Esse?” (Record) e “A Casa no Brasil” (Topbooks). |
Última atualização em Ter, 25 de Junho de 2019 23:25 |
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