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João Gilberto, Do luto ao tributo. Por Caetano Ignácio
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Ter, 09 de Julho de 2019 00:43

caetano_IgnacioDo luto ao tributo. A notícia da morte de João Gilberto me atingiu em casa, apertou meu coração e precipitou minhas lágrimas.

Da tarde de sábado até agora, o que fiz foi escutar sua música e ler depoimentos sobre ele, como num ritual fúnebre - um axexê particular.

Gostei muito das homenagens escritas por Caetano, Zuza, James e do relato de Paulo César Araújo. Adorei a apresentação que Arnaldo e Cézar fizeram no Fantástico da bela “João”, elegia composta por ambos para o bruxo de Juazeiro.

Eu, que tinha o costume de ouvir João, baixinho, ouvido na caixa, quarto escuro, como uma terapia de harmonização do corpo e dos sentidos, para me curar do impacto sonoro provocado por meus adorados carnavais e são joões, não tenho muito a acrescentar. Mas seguem algumas palavras.

João está para a história da música brasileira como Jesus para a do ocidente. Assim como registramos o tempo em a.C. ou d.C., também devemos registrá-lo, na linha cronológica de nossa música, em a.J. ou d.J. Sim, pois ninguém influenciou de forma tão revolucionária, intensa e imensa a música brasileira como João.

Aliás, na cultura brasileira, da voz e violão, sua altitude só é ombreada por Pelé. Inclusive por isso, quando simplesmente dizemos "João", não nos referimos a D. João VI nem a João Caetano nem a João Cabral nem a João Guimarães Rosa nem a João Donato ou a João Bosco, mas a João Gilberto do Prado Pereira de Oliveira.

Sem João, nosso demiurgo, gênio da raça e estilista-mor, não haveria realidade para Roberto Carlos ou Luedji Luna, Elis ou Djavan, Novos Baianos ou Anitta. A síntese do Brasil já estava em 1958, no lançamento do seu primeiro compacto simples, com apenas duas músicas: a faixa-título Chega de Saudade e Bim Bom. O litoral e o sertão. A bossa e o “baião”. O samba de São João.

Ademais, nenhum outro artista brasileiro influenciou tanto a música do mundo que nem ele. João foi o brasileiro reverenciado por gigantes como Miles Davis, Chet Baker, Chick Corea, Quincy Jones, Bob Dylan, Eric Clapton etc. João influenciou o jazz americano muito mais do que o inverso, com o balanço sincopado do samba reinventado por seu violão e repercutido nas baterias e harmonias de lá. Enfim, a música de João é estudada em escolas dos EUA, do Japão e da Europa.

Garimpeiro e ourives, sua devoção à beleza sensível e rigorosa e ao aprimoramento justíssimo e plúrimo da sonoridade emitida, pode ser percebida inclusive numa de suas raras entrevistas, como esta à revista O Cruzeiro, em outubro de 1960, na qual reflete sobre o ofício de cantor.

“Acho que os cantores devem sentir a música como estética, senti-la em termos de poesia e de naturalidade. Quem canta deveria ser como quem reza: o essencial é a sensibilidade. Música é som. E som é voz, instrumento. O cantor terá, por isso, necessidade de saber quando e como deve alongar um agudo, um grave, de modo a transmitir com perfeição a mensagem emocional”.

Eis a fórmula do “homem cruel, destruidor, de brilho intenso, monumental” que arrasou o bel canto da Era do Rádio (com seus dós de peito, vozes cheias, soluços e lágrimas vocais) e modernizou o cantar brasileiro - assim como Oswald de Andrade o fez com a poesia e Lula com o discurso político.

Por sinal, para mim, em virtude da nitidez cristalina, da delicadeza civilizadora e da plasticidade exuberante de sua dicção, João é a pessoa que fez o melhor uso da língua portuguesa através da voz em qualquer linguagem, espaço ou tempo.

Ele aperfeiçoa o silêncio, como versejou Arnaldo, pois canta uma palavra ou verso sem feri-lo, quase sem tensionar o ar. Bola de sabão. Tai chi chuan. Meditassamba.

E João enriquece a fonética do português, adicionando a pronúncia do “u” como no francês (com o famoso biquinho), além de vivificar algumas palavras, ampliando o sentido da poesia, feito um desenho sonoro animado, como quando em Milagre, canta a palavra “rede”, na segunda vez em que ela aparece no verso: “era só jogar a rede e puxar a rede”, fazendo um chiado que nos remete ao som da espuma do mar quando quebra na praia.

É bonito...

Outra coisa que me chama atenção em João é sua vida retirada. No Brasil, não temos, como em filosofias orientais, o hábito da renúncia à vida social, em busca do autoconhecimento e da iluminação, como simboliza a biografia de Sidarta, o Buda.

João, no entanto, leitor de Paramahansa Yogananda, renunciou à carreira musical há mais de 20 anos, quando fez seu último show em Salvador. Consciente da plenitude da obra e dos limites do corpo para continuar sua arte com a precisão irrenunciável, ele sabiamente se recolhe no seu quarto, monge de pijama, num mudo adeus ao mundo.

Imortal em vida. Vivo além morte. Duplo infinito - 88.

Lembro, enfim, os versos do poeta Augusto:

psiu
ouve a canção sem voz
que vem do fio do vão da foz do teu vazio

(...)

o sol sem dó da solidão

aço do açúcar
joão do tom

o ão do om.

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