As notícias daquele domingo estavam difíceis. Newton Lage, 84 anos, escritor reconhecido de manuais de imprensa, professor universitário aposentado, estava isolado num sítio a 120 km de Manaus, em plena Floresta Amazônica, com medo de morrer. Pagando caro por internet via rádio, era daquele lugar, um caldeirão de horrores da pandemia, que Lage, apaixonado pela leitura de jornais, chorava e refletia sobre absurdo de o Brasil chegar nesse lugar de implosão sem nunca ter realizado um projeto sólido de educação e saúde para seu povo. Como destruir o que sequer foi construído? Indagava-se.

As notícias de amigos e familiares deixavam Newton aflito, mas prometeu a si mesmo a racionalidade possível para ajudar os seus. Pagou um leito de UTI em hospital particular para sua sobrinha, que perdeu marido e filhos para o Coronavírus. Entubada, Lindaura tinha chance de sobreviver. Lage mandava um pouco da aposentadoria que tinha para dois netos e ao amigo Perseu, cantor de barzinho, que estava sem dinheiro até para comer. As notícias locais assustavam: evangélicos fundamentalistas sem máscaras faziam correntes de oração ao redor dos hospitais para destruir o vírus em nome de Jesus, ao mesmo tempo em que propagavam contaminações e mortes da doença. Era o apogeu da desinformação, refletia Lage.

Sentado em sua cadeira de balanço, Newton lia a matéria especial do The New York Times sobre o Brasil. Estados Unidos, Alemanha, Inglaterra e diversos países do mundo proibiram ou restringiram vôos para o país. O Paraguai mandou seu exército construir uma vala de 300m para impedir a entrada de brasileiros em seu território. Caminhoneiros brasileiros eram barrados na fronteira com a Argentina e deixavam a mercadoria que, de ali em diante, era transportada por argentinos. A Venezuela, vejam só, a Venezuela fechou fronteiras com medo da propagação de Coronavírus do Brasil. Imagine que havia, há pouco tempo atrás, manifestantes no Brasil bradando que o país jamais iria virar uma Venezuela. Agora é o mundo inteiro que não quer se tornar um Brasil.

O telefone tocou. Era Perseu. Disse poucas palavras a Lage. Com voz rouca, como se estivesse se afogando, agradeceu a Lage pela ajudava financeira, mas estava esperando a hora da morte, algo que se tornou corriqueiro em Manaus, a triste espera de partir em casa ou na rua, sem ter um hospital ou assistência devida. O Brasil mudou as regras de mortalidade do Coronavírus de idade para classe sociais, constatou Newton. Morriam aos milhares os pobres das periferias das cidades, e quem tinha algum dinheiro se refestelava em castelos. Lage se despediu de Perseu e pediu para o amigo cantar sua música favorita. Perseu escolheu O Juizo Final, imortalizado na voz de Clara Nunes, e cantou fininho que o sol há de brilhar mais uma vez, a luz há de chegar aos corações, até sua voz sumir numa ligação onde não se ouvia mais rouquidão, ofegância, tristeza nem nada.

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Bruno D'Almeida escreve crônicas literárias para a coluna O Fabuloso Cotidiano, no Mídia4P em parceria com a Carta Capital. Para conhecer outras crônicas de Bruno D'Almeida, clique aqui.

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