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Um mundo em uma foto. Por Ana Célia da Silva
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Seg, 08 de Junho de 2020 03:28

Ana-Clia-da-Silva-1O Conversa de Historiadoras desta semana tem a honra de publicar um depoimento de Ana Célia da Silva sobre uma foto histórica.  Ana Célia, Professora Doutora

Aposentada da UNEB e militante do Movimento Negro é referência na área de educação antirracista, tendo publicado numerosos trabalhos e atuado de uma forma  fundamental na construção da Lei 10.639, que estabeleceu a obrigatoriedade do ensino sobre história e cultura afro-brasileira.  Neste texto, Ana Célia retorna a 1981 através de uma foto, quando, com outros militantes, buscava ampliar as dimensões da luta do movimento negro no Brasil.

 

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Foto de Juca Martins/Olhar Imagem. "Manifestação durante a reunião da SBPC, Salvador, BA, 1981". Arquivo Edgard Leurenroth/Unicamp. A foto foi publicada pela primeira vez no jornal Voz da Unidade, em 1981. Em 2018, foi capa dos dois volumes de Cultura Negra, Novos Desafios Para os Historiadores,organizado por M. Abreu, G. Xavier, E. Brasil e L. Monteiro. Foi a historiadora Martha Abreu que fez chegá-la às mãos de João J. Reis e daí até Ana Célia

Uma foto: o Movimento Negro Unificado-BA e a Reunião da SBPC em 1981 em Salvador

Ana Célia da Silva

Professora Doutora Aposentada da UNEB

Militante do Movimento Negro

Fui levada por Albérico Paiva, professor e militante da Pastoral Afro, a uma reunião do MNU, quando ainda era o Grupo Nêgo, em maio de 1978. As reuniões aconteciam na Praça Municipal de Salvador, no "Cemitério de Sucupira", como apelidamos o jardim suspenso construído pela prefeitura no local onde se erguiam os prédios da Biblioteca Central do Estado e o Diário Oficial, destruídos por um incêndio.

Nessa primeira reunião do Grupo Nêgo, os militantes discutiram a participação em uma série de palestras que a prefeitura de Salvador iria promover durante a semana que antecedia o 13 de maio. Uma das palestrantes era uma militante do Rio de Janeiro, Lélia Gonzales. Participamos do seminário proposto pelo prefeito em exercício, Edivaldo Brito, que é negro, e aprofundamos relações com Lélia, que se tornaria uma espécie de madrinha do Movimento Negro Unificado na Bahia, fundado em 7 de junho de 1978. A fundação do MNU nacional aconteceria pouco tempo depois, em 18 de junho, em São Paulo. Para o ato enviamos como nossos representantes o dançarino Kal Santos e sua esposa, que hoje vivem na Itália. Levavam na bagagem uma carta na qual o Grupo Nêgo reconhecia e se integrava ao Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial – MNUCDR –, nome original do MNU.

Tudo isso aconteceu ainda durante a ditadura. Lembro-me que após o primeiro congresso do MNU em Salvador, realizado em 1980, os agentes do DOPS nos perseguiram pelos vários locais onde havíamos obtido licença para realizar o evento, a exemplo da Associação dos Funcionários Públicos, na rua Carlos Gomes. Finalmente, nos dirigimos ao  Goethe Institut (Instituto Brasil-Alemanha), território estrangeiro, localizado no corredor da Vitória, que nos acolheu.

No MNU-BA conheci os primeiros militantes e fundadores, Gilberto Leal e Leibe Carteado, geólogos, Astor, engenheiro civil, Edson Tosta Passarinho, um dos fundadores do Adé Dudu, primeiro Grupo de Trabalho para homossexuais negros do MNU, Luiz Alberto, operário da Petrobrás, que foi conduzido por nós por três mandatos consecutivos a Deputado Federal, Cao Santos, operário, Jane, psicóloga, Leninha, professora, Maria, Lino de Almeida e Manoel Almeida, sociólogos autodidatas, e muitos outros que vieram logo depois, inclusive Luiza Bairros, Wilson Santos, Adriana, Mary, a primeira mulher do movimento negro a usar os cabelos crespos naturais. Era manequim, como chamávamos na época as modelos, e muitos outros e outras cujos nomes não me ocorrem mais. (Desculpem, mas também não lembro os sobrenomes de alguns).

Três anos após a sua fundação, e um ano após seu primeiro congresso, o MNU realizou uma manifestação, dentro do campus da Universidade Federal da Bahia-UFBA, em Ondina, onde estava sendo realizada a Reunião Anual da SBPC, no período de 8 a 15 de julho de 1981.

Não lembro se o MNU tinha algum trabalho inscrito na Reunião, mas a questão racial não estava sendo discutida, especificamente, em nenhuma mesa ou grupo de trabalho. Então resolvemos levar esse debate nas diversas mesas e grupos dos quais participávamos como plateia. Nos intervalos, nos reunimos e decidimos organizar uma manifestação. Wilson Santos, um dos fundadores do primeiro grupo de homossexuais do MNU, o Adé Dudu, lembrou-me que houve um encontro de entidades negras presentes à Reunião da SBPC. Foi nessa reunião que decidimos realizar a passeata.  Convergimos para um local central do campus e, portando cartazes feitos de cartolina, iniciamos uma marcha gritando palavras de ordem. Tomados de surpresa, os participantes da SBPC nos olhavam entre curiosos e assustados. Participantes negros e pardos de outros estados começaram a aderir à marcha, seguidos por alguns brancos.

Tenho uma foto desse momento, que está perdida. Para minha grata surpresa, o historiador João José Reis me enviou outra foto daquele tempo, que é esta aqui apresentada. O fotógrafo é o talentoso Juca Martins, e quiçá seu arquivo guarda outras fotos, feitas sob outros ângulos, do mesmo evento. A foto se encontra publicada nas capas da obra, em dois volumes, intitulada Cultura Negra, festas carnavais e patrimônio negros (FAPERJ/EDUFF, 2018). Foi a historiadora Martha Abreu, uma das organizadoras desse livro, que fez chegá-la às mãos de João. Vamos à foto.

Entre outros temas registrados nos cartazes carregados pelos manifestantes naquele dia, no maior deles, à direita, pode-se ler, completando as palavras cortadas: "Memorial Zumbi. Parque histórico cultural. Por uma cultura de libertação".  Outro dizia: "Por uma ciência a serviço dos trabalhadores e das etnias oprimidas"; outro ainda denunciava a folclorização da cultura negra; um terceiro denunciava a violência contra o negro, velho e persistente problema. Pelo menos dois cartazes demandavam uma releitura de nossa história: aquele que exigia "Uma revisão da história do Brasil", outro que bradava "Pelo ensino da história e cultura negra". E a figura de Zumbi se entrelaçava a esta reivindicação, tendo-se tornado patrono das lutas dos negros e negras brasileiras. Já então o movimento negro levantava a bandeira da introdução de nossa história e nossa cultura nos currículos escolares do Brasil, o que só viria a se concretizar pela Lei 10.639/03, portanto em 2003, 22 anos depois daquela passeata!

E agora, passo a descrever personagens retratados naquele histórico momento das lutas negras, pessoas que não devem ser esquecidas:

Lino de Almeida (1958-2006) sobressai na foto, usando uma camisa preta com letras brancas, onde se lê "ZUMBI: 20 de novembro, Dia Nacional da Consciência Negra." E embaixo, "Movimento Negro Unificado".  Ele então portava dreads bem curtos, que estavam começando a crescer e chegariam até a cintura. Piscava nervosamente, me olhava e sorria. Sociólogo autodidata, foi um dos fundadores do MNU-BA, e antes disso do Núcleo Cultural Afro Brasileiro.  Lino foi um dos militantes mais proeminente do MNU-BA. Tinha relações com o movimento negro americano. Era radialista e atuou no cenário audiovisual, realizou o documentário "A Bahia do Afoxé Filhos de Gandhi", ganhador do prêmio Petrobrás Cultural. Introduziu vários textos de Malcom X e Marcus Garvey como leituras nos cursos de formação de quadros do MNU. No ano de 1986 participou do III Congresso Internacional da Tradição dos Orixás e Cultura, em Nova York, juntamente com Mãe Stella, o Ilê Aiyê, eu e várias pessoas da religião do Candomblé. Fez contato com os Panteras Negras e um deles, Stokely Carmichel (1941-1998), ele trouxe a Salvador.

Hamilton Bernardes Cardoso (1953-1999) aparece no lado esquerdo da foto, segurando cópias do manifesto que produzimos para distribuição. Nascido em Catanduva, SP, jornalista, militante do PT e muito reconhecido na sociedade. Foi casado com Dulce Pereira, militante também do PT e do MNU-SP. Tiveram dois filhos. Desfeito o casamento, soubemos que ele estava doente. Teve um fim trágico, suicidando-se por afogamento, no rio Tietê, em São Paulo. O MNU-BA prestou-lhe uma bela homenagem colocando uma coroa de flores no dique do Tororó, em Salvador.

Ismael Ivo está ao lado de Lino na foto, de calça branca curta, sem camisa. Ele iria brilhar como dançarino e coreógrafo nos palcos brasileiros e internacionais. Foi aliás na Bahia, dois anos após aquela passeata, que conheceu o coreógrafo afro-americano Alvin Ailey  – fundador do American Dance Theater  –, alavancando sua carreira internacional. Ismael viveu durante algum tempo em Salvador, onde frequentava as reuniões do MNU. Se apresentava junto com os demais dançarinos do grupo de teatro do MNU, formado por, além dele, Nadir Nóbrega, Tição, Kal Santos, entre outros.

Luiza Bairros (1953-2016). Do lado esquerdo da foto, logo atrás de uma garotinha, está Luiza, olhando para o lado. Ela se tornaria uma das mais importantes militantes e intelectuais negras brasileiros, tendo sido inclusive ministra da Secretaria Especial de Promoção da Igualdade Racial-SEPIR, com status de ministério, durante o primeiro mandato de Dilma Rousseff, depois de ter ocupado cargo equivalente na Bahia, sob o governo de Jacques Wagner. Fundou, juntamente com outras militantes, o Grupo de Trabalho das mulheres do MNU. Dividiu a militância com uma carreira acadêmica que a levou a fazer um Mestrado em Sociologia na UFBA e a cursar o Doutorado na Michigan State University (EUA), também em Sociologia. Não chegou a concluir seu Doutorado, pois a militância falou mais alto. Foi companheira durante muitos anos do militante Jônatas Conceição da Silva, do GT de Educação do MNU.

Ana Celia. Eu mesma, logo atrás de Luiza, usava na ocasião uma calça preta e uma camisa branca com o retrato de Lélia Gonzales. Fundei, juntamente com Jônatas Conceição, Gildália Anjos, Carlos Menezes, entre outras, o Grupo de Trabalho de Educação Robson Silveira da Luz. A esse GT juntaram-se depois Lindinalva Barbosa, professora de Letras e Egbome do Terreiro do Cobre, Landê Anawale, Tata, poeta e escritor, e muitos outros.

Gilberto Leal. Atrás de mim, aquele rapaz alto de boina branca é Gilberto Leal. Ele foi um dos primeiros fundadores do Grupo Nêgo, precursor do MNU-BA. Tinha muita preocupação com o branqueamento das mulheres que vinham para a entidade. Lembro que quando eu cheguei, com os cabelos em transição, ele me sugeriu que retirasse o alisado e os deixasse crespos, que iria assim ficar ainda mais bonita. Gilberto passou a ser o arquivo ambulante do MNU. Nos reuníamos atrás da biblioteca Central, nos Barris, e aguardávamos a chegada de Gilberto, que sempre trazia uma bolsa grande cheia de artigos, panfletos, manifestos e mosquitos para distribuição nas noites das Terças-feiras da Benção, no Pelourinho. Se fosse preso não sei como explicaria a posse desse material. Gilberto esteve à frente da fundação do Conselho de Entidades Negras –  CONEN, do qual é um dos dirigentes.

Jônatas Conceição (1952-2009). Atrás de Gilberto, meu irmão, Jônatas Conceição, doutor em Literatura, poeta e radialista, de quem vemos apenas sua larga testa. Na época era recém-chegado de São Paulo, onde cursava o Mestrado em Literatura na UNICAMP, mas que veio a concluir na UFBA. Realizou diversas atividades no MNU, tanto no GT de Educação quanto em outras frentes, porque tínhamos dupla militância, a específica nos GT e a geral, que consistia na luta contra o racismo, em cursos de formação de quadros, participação em coordenações municipal, estadual e federal, passeatas, e junto a outras entidades. Como parte do GT de Educação, Jônatas orientou nossa participação na Escola Aberta do Calabar, no Maledebalê, no Ilê Aiyê, do qual era um dos diretores. Coordenou com Gildália Anjos cursos de alfabetização com mais de quarenta salas em bairros de Salvador. Um deles tinha o nome de Paulo Freire, ficava na igreja da Capelinha de Deus Menino, contava comigo e Luiza Bairros, e tinha ainda o Projeto Banca, desenvolvido por Gilda Nascimento na Escola Mãe Hilda, do Ilê Aiyê.

Muitas crianças participaram da passeata, pois era habitual o MNU trazer nossas crianças para os atos públicos. Infelizmente não consigo identificá-las. Algumas eram filhas e sobrinhas de militantes, e são hoje militantes negras nas diversas entidades existentes em Salvador. Eu espero que a divulgação desta foto faça com que elas se reconheçam e se apresentem.

Devo finalmente mencionar mais uma pessoa que participou daquela marcha, mas que não aparece na foto. Trata-se deAnilson, militante do PT dentro do MNU. Participava da luta antirracista, mas não lembro de ele ter participado de algum GT. Eu tenho uma foto de Anilson comigo na passeata. Ele está com o braço para cima, segurando um cartaz. Anilson teve uma morte súbita, saía de uma reunião do PT, foi acometido de  infarto fulminante, caiu na rua, morreu. Não consigo lembrar como foi seu funeral. Minha mente apaga memórias traumáticas.

E ficam assim registradas as lembranças, que esta foto me suscitou, de um momento histórico do Movimento Negro na Bahia. Um momento em que negras e negros bateram com força na porta da Ciência, gritando alto e bom som: nós também queremos entrar.

*Este texto contou com a colaboração do historiador João José Reis nas informações sobre os personagens e para a revisão final.

Artigo publicado originalmente no Conversa de Historiadores

https://conversadehistoriadoras.com/2020/06/07/um-mundo-em-uma-foto/

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Última atualização em Seg, 08 de Junho de 2020 04:23
 

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