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A tristeza de uma família que não me aceita. Por Bruno D'Almeida
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Dom, 24 de Outubro de 2021 03:15

Bruno_AlmeidaPerdi minha família para a estupidez – Capítulo 04

– Esse Natal vai ser pior, eu vou pro encontro da família pra afrontar.

– Por quê?

– Porque a briga da última vez aconteceu por causa de um beijo. Um beijo!

 

– Fale um pouco sobre isso, Mariene.

– Cara…como é seu nome mesmo? Sei que você é psicólogo, mas gosto de chamar as pessoas pelo nome.

– Sebastião.

– Sebastião, a gente não se beijou na frente de todo mundo não, eu e minha namorada fomos para a lateral da casa, não tinha ninguém lá. Afonsinho passou pra pegar carvão e viu a gente no sofá. Ficou parado olhando, como se esperasse alguma coisa, fez cara de reprovação. Estava provocando.

– Daí vocês se beijaram.

– Lógico, quem é aquele fedelho pra me confrontar?

– Sempre foi assim?

– Sempre. Você não sabe o que é não ser aceito pela sua própria família.

– Quando você descobriu que gostava de mulher?

– Não descobri, sempre me vi assim. Nunca houve um momento de descoberta, sabe?

– Entendo perfeitamente.

– Sempre vi estranhamento das pessoas diante daquilo que sou, isso sim, descobri bem cedo.

– Fale sobre.

– Tia Elvira sempre ficou me perguntando por namorado. Sempre. “Cadê o namoradinho? Olha, você nunca apresentou um namoradinho”. Ela se fazia de sonsa, na verdade estava querendo determinar de quem devo gostar, sabe? Era muito constrangedor.

– Mais alguém?

– A família praticamente inteira. Minha mãe parou de falar comigo. Quando cortei o cabelo curto, aos 14 anos, ela reclamou que eu parecia um homem. Por isso me tornei veterinária. Não existe coisa melhor do que lidar com bicho, que não lhe julga ou lhe diz o que fazer. Tenho ódio dessa família, sei dos podres de todo mundo. Tia Elvira tem caso com pastor, Afonsinho não saiu do armário e nada, nada nesse mundo se compara a tio Adamastor.

– Preciso deixar claro que a conversa aqui é sobre você, sobre como se sente e de forma a terapia pode te ajudar.

– Sobre tio Adamastor, infelizmente tem haver comigo. Nunca tive forças pra contar o que aconteceu.

– Fique à vontade.

– Acho que foi no churrasco de Natal de 2000. Tinha 16 anos. Ele estava bêbado. Ficava olhando para minhas partes íntimas. Estava de biquíni. Foi horrível, me senti nua. Resolvi sair da piscina e fui ficar ao lado de minha mãe. Quando levei o prato pra cozinha, ele, ele…

– Se não quiser falar, entendo.

– Ele passou fazendo um som de carne fritando pra mim. Senti nojo, vontade de vomitar. Fiquei paralisada, sem conseguir dizer nada!

– Pode chorar o quanto quiser. Não segure.

– Aí ele passou a mão por cima do meu short e disse que um dia iria me dar um corretivo pra eu aprender a gostar de homem. Nunca me senti tão violentada. E justamente por alguém da minha família.

– Você contou para alguém?

– Não consegui. Com o tempo, parece que essa imagem ficou escondida, apagada na minha memória. Simplesmente fiquei esses anos todos sem frequentar os eventos de minha família. Meu psiquiatra disse que isso foi um TEPT, Transtorno de estresse pós-traumático. Sempre que estou em qualquer situação em que me sinto em perigo, fico ansiosa e quero sair correndo.

– Então porque resolveu ir pro encontro de Natal de sua família, mesmo tendo TEPT?

– Porque passei quase vinte anos me tratando e, aos poucos, consegui controlar a ansiedade e o medo. Decidi que não vou mais me esconder nem deixar de mostrar quem sou. E quem vier pra cima de mim, vou enfrentar.

– Você tem apoio de alguém da família?

– Minha mãe e eu reatamos, ela me pediu desculpas depois que ficamos cinco anos sem nos falar. Meu pai não mora mais no país, conversamos por videochamada, ele nunca tocou no assunto. E tem João também, sempre fomos muito grudados desde a infância. Ele era apaixonado por mim, de me mandar poemas e tudo mais.

– Mariene, você acha que ir ao próximo encontro da família para criar confusão pode ajudar nesse seu processo de cura? Não tem medo de a crise de estresse voltar?

– Acho que não. Estou entendendo esse jogo direitinho.

– Que jogo?

– Você está sendo pago pra unir a família novamente, não é?

– O meu objetivo é proporcionar o bem-estar coletivo. O nosso código de ética não proíbe atender mais de um membro da família se o objetivo for a melhora do paciente.

– Então significa que você vai ser imparcial? Não vai contar tudo que disse pra ele?

– Lógico que não vou contar.

– Pena, esperava que contasse, sabe por quê?

– Você está fazendo um julgamento errado a meu respeito.

– Adamastor está numa situação completamente desfavorável. Depois do Natal de 2019, os podres de meu tio vieram à tona. O momento de denunciar Adamastor por tentativa de estupro de vulnerável é agora.

– Você tem como provar?

– Não. Gabriel viu o momento em que tio Adamastor passou a mão em mim, mas ele morreu de covid. E, mesmo se não tivesse morrido, não iria testemunhar a meu favor. A minha família foi contaminada pelo ódio.

– O problema é que, ao acusar sem provas, quem pode ser processada é você.

– Não tenho provas, mas tenho como provar. Um mulher me procurou depois da repercussão do Natal de 2019. Disse que Adamastor tentou abusar dela também. Minha vó dizia que dor de barriga não dá uma vez só. Desconfio que, ao denunciarmos esses dois casos, mais mulheres podem se sentir encorajadas a denunciar Adamastor.

– Mariene, preciso ser muito aberto com você. Acho que não vou conseguir te atender mais por causa do evento pós-traumático, não tenho essa especialidade.

– Avisa a meu tio que ele vai se ferrar, beleza? Se nada me acontecer, é porque você está dizendo a verdade. É uma pessoa correta. Se alguém tentar fazer algo contra mim até o Natal, é porque você está sendo pago só pra limpar a barra dele com a mídia. Por isso você vai continuar me atendendo sim. Estou de olho em você. Até a próxima consulta.

– Até.

Bruno D’Almeida escreve textos para a coluna Fabuloso Cotidiano, as histórias de ficção de um mundo de verdade, no Mídia4P em parceria com a Carta Capital. Siga Bruno D’Almeida em seu canal no YouTube e no Instagram @dalmeidabruno. Para ler outros textos do autor,

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Última atualização em Seg, 25 de Outubro de 2021 03:18
 

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