Era uma casa portuguesa com certeza, nos detalhes da decoração e na fartura da mesa em maioria das famílias cristãs lusitanas.
A sexagenária Odete Salazar Pimentel exercia o poder absoluto no comando do seu clã, sendo respeitada ao extremo pelo marido, o doutor Brandão.Dona Odete era o terror das noras e a candura quando o assunto era netos. A dedicação pelos pimpolhos fazia contraponto à imagem que transmitia de ser megera.
Além da família, Dona Odete tinha uma veneração intensa por Nossa Senhora de Fátima.
Odete Salazar era a tesoureira das finanças da paróquia e cumpria com afinco as determinações do cargo. A reforma completa das instalações da igreja, a compra de bancos novos e um moderno sistema de som foram algumas das realizações da devota portuguesa. Era respeitada por todos os paroquianos e despertava um certo temor ao jovem padre Gaspar por conta de interferir na liturgia das celebrações.
A decoração do altar da santa, a arrumação do púlpito, a escolha dos coroinhas, a programação das cerimônias de batismo e casamento, tudo funcionava sobre a batuta de Dona Odete.
A igreja na região central de Salvador era uma espécie de extensão da casa da portuguesa.
As festividades em dezembro na Bahia iniciam-se com os adeptos do candomblé celebrando Iansã, rainha do raios que adora ser agraciada com pratos à base de azeite de dendê. Comida quente como gostam os filhos de Oyá, geralmente irreverentes e de pavio curto.
Maria do Rosário, moradora da Curva Grande, no bairro do Garcia, uma filha de Oyá procurou a igreja da Senhora de Fátima para acertar o batismo da neta recém-nascido, justo no momento que Dona Odete entrava no salão paroquial.
Ao ver aquela mulher negra com um torço vistoso sobre a cabeça e exibindo um colar de contas vermelhas e brancas ornando o colo farto, logo, perguntou para uma voluntária da paróquia: - O que essa senhora veio fazer em nossa igreja?
A moça respondeu: - Ela é minha vizinha. O nome dela é Maria do Rosário. Ela é ialorixá e veio acertar o batizado da netinha que nasceu no mês passado !Sem dirigir-se à Maria do Rosário, Dona Odete advertiu a moça, determinando:
- Você sabe que falei pro padre Gaspar que aqui não celebramos nada pra esse “povo de candomblé” ? Mande essa senhora procurar outra igreja onde o padre celebra missas tocando atabaques, aqui na minha igreja, não!
E saiu rápido como chegou.
A filha de Iansã ouviu a advertência demonstrando indignação no seu olhar. Dona Maria agradeceu pelo atendimento e foi embora.
Era noite de Natal e mais uma vez a família Pimentel estava reunida. Dessa vez vieram parentes de Lisboa para conhecer a chegada do Ano Novo nas praias de Salvador. A imensa mesa exibia o indefectível peru natalino, o tradicional bacalhau à Gomes de Sá, bolinhos de chuva, doces e frutas cristalizadas,também, vinhos e a imensa garrafa de espumante.
O espírito natalino pairava no ar, Dona Odete após finalizar os preparativos da ceia retirou-se para o quarto para vestir-se para celebração. Uma das filhas demonstrou preocupação com a demora da mãe e decidiu ir até o quarto, quando a matriarca surgiu na porta.
A aparição causou espanto geral na figura daquela mulher num vestido de lamê vermelho já reduzido nas medidas fartas da portuguesa. Um brilhante batom vermelho delineiava os lábios, o decote generoso estava disfarçado por colares dourados iguais aos brincos. O cabelo estava preso num coque.
Sem emitir qualquer palavra, Dona Odete ocupa a cabeceira da mesa, Seu Brandão ficado ai lado da mulher evitando fazer perguntas e todos ocupam seus devidos lugares. Diante ao adiantado da hora, um dos filhos pega a garrafa da champnge e trata de abrir para fazer o brinde natalino. Ao espoucar da garrafa, uma gargalhada metálica explode pela sala. A matriarca toma a garrafa da mão do filho e bebe três goles seguidos da bebida. A família Salazar fica espantada diante do comportamento inesperado de Dona Odete.
A entidade recém-chegada anuncia:
“ Ah! Vocês estavam reclamando que eu estava demorando, pois eu estou aqui !”
A mulher olha em direção ao filho mais novo e diz:
“ Seu moço de camisa azul dê um abraço nesse moço seu irmão do lado” e aponta o sobrinho Ricardo que não entende.
A entidade volta-se para mãe de Ricardo e complementa:
“ O pai do seu filho que você disse que foi embora pro estrangeiro quando o menino nasceu está aqui nessa sala ".
Seu Brandão é acometido por uma comprometedora crise de tosse nervosa.
A família é abalada pelo terremoto de revelações que se seguem através daquela presença até então desconhecida.
Num determinado momento, a Padilha chama um menino que está próximo à mesa e o garoto aproxima-se receioso
Ao colocar a mão sobre a cabeça da criança, volta-se para uma das noras e vaticina:
“ Pegue esse moço e entregue pro velho, porque é filho dele e deve ser cuidado por ele”
O pequeno Antônio sempre acometido por crises epiléticas era um dos sofrimentos da família nas idas e vindas às emergências dos hospitais.
Após abrir a caixa de Pandora da família Salazar, a entidade afasta-se da mesa e vai em direção à varanda.
Solta uma gargalhada e a Maria Padilha sai pela noite natalina à fora.
Odete Salazar Pimentel retorna lívida para a sala de jantar e reúne-se com a família..
O sino da igreja de Nossa Senhora de Fatima anuncia meia-noite. Ela exclama:
- Meu Deus, que hora é essa? A missa do Galo já está começando e eu ainda estou por aqui !
Zuggi Almeida é baiano, escritor e roteirista.
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