Aldeia Nagô
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O Banco Mundial dos velhos tempos, por Paulo Kliass

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O dia 21 de novembro de 2017 talvez tenha marcado uma triste mudança de rota no comportamento de um dos principais organismos multilaterais em sua história mais recente de relações com o Brasil.

Naquela terça-feira foi convocada uma cerimônia oficial para o lançamento de um importante documento oficial do Banco Mundial (BM), com o pomposo título “Um Ajuste Justo: Análise da eficiência e equidade do gasto público no Brasil”.

Presente ao ato, o Ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, estava acompanhado do Ministro do Planejamento, Dyogo de Oliveira. Na sede da Fazenda, ambos faziam sala para o representante do BM, Martin Raiser, em evento que foi concebido para conferir legitimidade à nova versão do receituário do desastre. Na verdade, trata-se de um conjunto de proposições que lembravam os antigos tempos das cartas de recomendação do Fundo Monetário Internacional (FMI) e de outros libelos de natureza impositiva elaborados pelo próprio BM.
A história e a origem do mencionado estudo talvez nos auxiliem na compreensão de tal mudança de comportamento. Afinal, há anos que não se tinha notícia de tal nível de ingerência externa na formulação explícita de políticas públicas em nossas terras. Desde 2003, a relação com tais organismos estava mais civilizada e o financismo conservador era obrigado a se fazer representar por meio de seus colunistas nos grandes meios de comunicação e por intermédio de seus representantes informais nos altos escalões do governo. Mas nesse caso, a relação mudou e houve uma solicitação por parte do próprio Ministro da Fazenda, logo no início do segundo mandato de Dilma Roussef. Triste ironia da História.

O fato concreto é que tudo começou com uma demanda de Joaquim Levy ao BM, que recorreu em 2015 aos seus colegas daquela instituição financeira sediada em Washington. Ele pedia que a instituição realizasse um estudo a respeito da qualidade dos gastos públicos do governo federal. Estranho, para dizer o mínimo. Aquele que havia sido indicado para o comando da economia como a segunda opção do Presidente do Banco Itaú desconsidera a competência profissional reconhecida que existe no interior da própria administração pública federal e apela para o espírito dos Beatles, implorando por uma “little help from my friends”. Ou seja, busca amparo junto à galera que raciocina afinada com o pensamento hegemônico no interior do sistema financeiro internacional.

Levy encomenda estudo ao Banco Mundial

A encomenda do BM demorou mais de dois anos para ser concluída e só pode ser realizada graças à especial e dedicada “colaboração” com que a equipe encarregada pelo estudo foi agraciada pelos dirigentes que ocupam postos estratégicos na Esplanada durante esse período. Afinal, verdadeiras caixas pretas de informações estratégicas do governo brasileiro foram gentilmente oferecidas aos consultores externos. O mais impressionante e significativo de tudo isso é que Joaquim Levy deixou o governo no início de janeiro de 2016 para – como que por mera e inusitada coincidência! – ser nomeado para o cargo de Diretor Financeiro do próprio Banco Mundial em fevereiro de 2016. Haja promiscuidade nessa teia de relações incestuosas.

A lista de agradecimentos do documento contém uma extensa fila de nomes e de pessoas envolvidas com as altas esferas do governo que sucedeu ao golpeachment. É bem compreensível tal deferência da alta tecnocracia do BM. Afinal esse pessoal do governo Temer está altamente empenhado em promover a maior parte das propostas que a fina flor do financismo internacional também está exigindo das elites tupiniquins. Como a população e as forças progressistas começam a se articular para evitar a continuidade e o aprofundamento do desmonte, os serviçais sempre de plantão por aqui agora resolveram apelar para o apoio político e ideológico do BM.

O próprio documento reconhece a sua gênese e aponta para a cumplicidade solicitada há mais de dois anos atrás:

“Atento à mudança de cenário, o governo federal solicitou ao Banco Mundial a elaboração deste relatório, com o objetivo de realizar uma análise aprofundada dos gastos do governo, identificar alternativas para reduzir o déficit fiscal a um nível sustentável e, ao mesmo tempo, consolidar os ganhos sociais alcançados nas décadas anteriores.” (GN)

Ora, nada mais ridículo do que esse pedido de ajuda. Há equipes e carreiras muito bem capacitadas no âmbito da administração pública federal, com plenas condições de cumprir com esse tipo de demandas, tais como: i) analisar com profundidade a estrutura de gastos; ii) identificar alternativas para reduzir o déficit fiscal; e iii) consolidar os ganhos sociais das décadas anteriores. Talvez o verdadeiro problema seja que a maior parte desses servidores, que conhecem tão bem a realidade econômica do governo e do País, não esteja de acordo com a orientação do austericídio.

Banco Mundial “esquece” suas descobertas

No entanto, um dos aspectos mais interessantes é que os autores do documento se traem logo no início, na própria apresentação. Assim, o texto reconhece claramente que existem alternativas para a implementação de aperfeiçoamentos na estrutura da política fiscal. E, mais do que isso, terminam por confessar a característica essencial da desigualdade social e econômica em nossa sociedade. Assim, afirmam que a principal descoberta do estudo relaciona-se ao fato de que alguns programas do Estado brasileiro favorecem ainda mais os setores do topo da pirâmide, ou seja, que tais políticas públicas são concentradoras de renda.

O principal achado de nossa análise é que alguns programas governamentais beneficiam os ricos mais do que os pobres, além de não atingir de forma eficaz seus objetivos. Consequentemente, seria possível economizar parte do orçamento sem prejudicar o acesso e a qualidade dos serviços públicos, beneficiando os estratos mais pobres da população.” (GN)

Mas o documento parece não se interessar por esse tipo de rota alternativa que ele mesmo evoca ainda na apresentação. Afinal, poderia ser muito arriscado para o BM enveredar por um caminho distinto da via do conservadorismo ortodoxo e que terminasse por apontar para soluções que se preocupem com as camadas mais pobres da população. Não! Ao contrário, a equipe responsável optou por recorrer às nada saudosas fórmulas da arrogância e da prepotência dos velhos tempos. Não se valeu nem mesmo daquelas recomendações básicas de qualquer manual de aprendiz de diplomacia, onde se sugere apresentar a maldade embalada em um discurso que se apresente como gentil e delicado. A primeira frase do texto fala por si só: é um tapa na cara de cada um de nós.

“O Governo Brasileiro gasta mais do que pode e, além disso, gasta mal. Esta é a principal conclusão deste estudo”.

É possível que o leitor atribua esse início a um eventual destempero, que possa ser relevado em função de algum problema hepático do redator no momento da falta de inspiração. Caso continue na tarefa da leitura detalhada do restante do documento, outras surpresas surgirão. Uma delas chama a atenção, ainda logo no início – no item 5 da apresentação. Ali, em uma espécie de laivo de sinceridade, os autores parecem se esquecer da diretriz estratégica da encomenda que a eles foi dirigida por Levy e depois referendada por Meirelles.

O documento dedica todo um parágrafo para reconhecer aquilo que os economistas não alinhados com o financismo vínhamos falando há muito tempo. Vale a pena citar o arroubo de sinceridade que deixaram escapar:

“A princípio, a redução dos gastos não é a única estratégia para restaurar o equilíbrio fiscal, mas é uma condição necessária. A outra alternativa seria, em vez de cortar seus gastos, o governo Brasileiro deveria aumentar suas receitas tributárias e reduzir os altos pagamentos de juros sobre sua dívida pública. Certamente, há escopo para aumentar a tributação dos grupos de alta renda (por exemplo, por meio de impostos sobre a renda, patrimônio ou ganhos de capital) e reduzir a dependência dos tributos indiretos, que sobrecarregam os mais pobres.”

O leitor mais desatento até que poderia se deixar entusiasmar por tal avaliação e considerar que haveria algo de novo no coração do BM. Afinal, parece realmente estranho partir daquela organização multilateral sugestões de se buscar a promoção do reequilíbrio fiscal por meio de aumento de impostos sobre o topo da pirâmide e – oh, santa heresia! – por meio de redução das despesas financeiras associadas ao pagamento de juros sobre a dívida pública. Até parede discurso de comuno-bolivariano!

Arrogância e prepotência, “as always”

Mas o otimista entusiasmado recebe uma ducha de água fria logo na sequência. Apesar de mencionar tais alternativas, o BM deixa logo claro que não se trata aqui de recomendar nenhum exercício de heterodoxia à equipe de Temer. As medidas são citadas e deveriam integrar a estratégia de ajuste, mas não ganham espaço para discussão no documento e nem serão objeto de nenhum tipo de recomendação. Ufa! O povo da finança parece agradecer e volta a respirar aliviado.

“Tais medidas não são discutidas em detalhe neste relatório, mas deveriam fazer parte da estratégia de ajuste fiscal.”

Superado esse pequeno deslize, o documento então se dirige para aquilo que dele o governo tanto ansiava. Trata-se de uma agenda de aprofundamento do desmonte que vem sendo promovido em nossa estrutura de direitos sociais. E também uma agenda de ampliação da destruição das bases de potencial recuperação de uma estratégia desenvolvimentista em nosso País.

Como era de se esperar, o foco nevrálgico do BM é a questão previdenciária. Não por acaso, a divulgação do texto ocorre na mesma semana em que o governo Temer inicia uma campanha milionária nos meios de comunicação para desinformar a população a respeito das consequências de sua proposta da Reforma Previdência recauchutada. Nesse mesmo período, o núcleo duro do Planalto aposta todas as suas fichas para tentar aprovar a nova versão da PEC na Câmara dos Deputados antes do final do ano. E para tanto, o comando do governo avalia que a apresentação de uma chancela do Banco para sua intenção poderia convencer alguns deputados ainda reticentes. Ou então se dirigir àqueles que ainda não tenham sido ainda convencidos pelo festival do fisiologismo explícito. Enfim, mais um escândalo patrocinado por um governo que disputa sua popularidade com a margem de erros das pesquisas de opinião.

A fonte mais importante de economia fiscal de longo prazo é a reforma previdenciária. Os grandes e crescentes déficits do sistema previdenciário constituem um fator chave da pressão fiscal.”

Aqui reside a cereja do bolo. Ao contar com a preciosa colaboração das equipes da Secretaria da Previdência Social, o documento trabalha com a interpretação falsificada de que as necessidades de financiamento da previdência social são “déficits estruturais”. Por exemplo, não há nenhuma menção à queda circunstancial da capacidade de arrecadação nos últimos 3 anos, provocada basicamente pela recessão e pelo desemprego. Afinal, a fonte da receita previdenciária é a folha de pagamento. Para os tecnocratas, o chamado “rombo” da previdência teria vindo para ficar e não haveria solução fora da redução das despesas.

Previdência em primeiro lugar

E nessa missão destruidora, o documento continua abusando de inverdades e da manipulação de informações.

“No entanto, diferentemente do programa Bolsa Família, que é bem direcionado aos mais pobres, as aposentadorias e pensões sociais não são bem focadas aos indivíduos pobres. Na verdade, 70% dos beneficiários do BPC e 76% dos beneficiários das aposentadorias rurais não pertencem ao grupo dos 40% mais pobres da população.”

Acima identificamos claramente a intenção de retirar dois programas essenciais da área da previdência e encaminhá-los para o grupo da assistência social. Esse é um movimento antigo e recorrente, que pode colocar o futuro de ambos em risco. Como argumento para excluir os benefícios previdenciários dos trabalhadores rurais e o Benefício de Prestação Continuada (BPC) desse rol, o texto afirma que eles oferecem valores mais elevados do que o Bolsa Família e que pesam mais no Orçamento. Além disso, o documento falta com a verdade quando diz que 70% do BPC e 76% dos aposentados rurais são parte da elite, pois não pertenceriam aos 40% mais pobres. Uma loucura!

Caso tivessem acesso à legislação e às normas dos benefícios que tanto criticam, os autores veriam que mais de 99,3% dos benefícios previdenciários rurais são iguais ou inferiores a um salário mínimo. Assim, a quase totalidade dos quase 10 milhões de benefícios não supera o valor mínimo necessário à sobrevivência do indivíduo. Mas os autores não ligam para isso e chegam a afirmar que esses “privilegiados” não pertencem ao grupo dos 40% mais pobres.

Por outro lado, tampouco devem ter sido informados por seus fiéis colaboradores a respeito das condições de alocação do BPC. Tal benefício foi criado na Constituição de 1988, sendo destinado a pessoas portadoras de deficiência incapazes para o trabalho e a idosos com idade mínima de 65 anos. Além disso, a renda familiar per capita dos beneficiários deve ser inferior a ¼ de salário mínimo. Ora, em tais condições, também soa como desconhecimento grave ou como provocação barata a afirmação de que são privilégios atribuídos majoritariamente a cidadãos da elite brasileira.

O documento continua difundindo heresias por muitas outras esferas da administração pública. Assim, ele sugere o fim da gratuidade no ensino superior; a redução das despesas com servidores públicos; mudanças no sistema de proteção social (abono salarial, seguro desemprego e acesso ao FGTS); fim da obrigatoriedade de os municípios gastarem 25% de sua receita em educação; redução drástica nos gastos com saúde, em especial com o SUS; eliminação dos incentivos fiscais para micro e pequenas empresas (SIMPLES); entre tantas outras maldades.

No entanto, para manter a tradição dos velhos tempos do BM, não encontramos nenhuma sugestão ao longo do documento para buscar o reequilíbrio fiscal por meio de impostos a incidirem sobre o topo da pirâmide social e econômica. O capital financeiro continua ser solenemente ignorado como fonte de tributação e as despesas financeiras do governo não são consideradas como um problema fiscal. Assim, a solução continua sendo o arrocho sobre os mais pobres. E ponto final!

 

Paulo Kliass é doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal.

Artigo publicado originalmente em https://jornalggn.com.br/noticia/o-banco-mundial-dos-velhos-tempos-por-paulo-kliass

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