O poder do mercado e a impotência dos juízes, por Fábio de Oliveira Ribeiro
Todos são iguais perante a Lei sem distinção de qualquer natureza. Este é um dos princípios constitucionais mais importantes, pois impede que um ser humano trate o outro como inferior.
A regra lapidar do art. 5º, caput, da CF/88, vem sendo diariamente corroído por distinções bastante evidentes. Algumas delas já existiam – refiro-me evidentemente à diferença gritante entre os agentes do Estado (que desfrutam privilégios) e os cidadãos (que pagam impostos) – outras foram sendo criadas após o golpe de 2016. A população rejeitou o programa neoliberal de Aécio Neves, mas os derrotados conseguiram enfia-lo goela abaixo dos vitoriosos na eleição. Em consequencia disso, as distinções econômicas entre os ricos e pobres se tornaram mais acentuadas, pois os primeiros obtiveram o perdão de suas dívidas tributárias enquanto os outros perderam seus direitos sociais, petrolíferos, trabalhistas e correm o risco de perder até seus direitos previdenciários.
O mais grave, contudo, é ver a imprensa solapar o princípio da igualdade em nome do mercado, este Deus ex machina que se assenhora de todo o espaço público como se não fosse apenas um espaço privado de trocas entre aqueles que já eram economicamente privilegiados. O Estado, concebido como uma instituição de direito público voltada para a correção das distinções sociais herdadas pelo nascimento se torna assim um instrumento privado de opressão nas mãos de uma das classes sociais.
Milhões de brasileiros que usavam fogões a gás foram condenados a voltar a usar lenha para cozinhar. O resultado previsível será um aumento do desmatamento. A julgar pelos preconceitos sociais, que nos últimos anos foram elevados à condição de categorias jornalísticas inquestionáveis, em breve os pobres voltarão a ser hostilizados pela imprensa. Armando-se de argumentos ecológicos, os jornalistas irão choramingar porque florestas inteiras foram e serão devoradas pelos fogões dos pobres. Vítimas do empobrecimento programado, eles serão culpados porque se recusam a comer alimentos crus.
A lógica da exclusão não se torna completa antes que os outros, considerados como se fossem inferiores, passem a ser vistos como indignos de continuar existindo. Quem quiser ver realmente o futuro do Brasil que está sendo construído terá que a dinâmica de separação, exclusão, humilhação e violência genocida entre alemães arianos e judeus (Alemanha, anos 1930), hutus e tutsis (Ruanda, anos 1900), judeus e palestinos (Israel, na atualidade).
Como órgão do Estado, o poder judiciário deveria se opor à dinâmica social que está sendo lentamente construída pelas empresas de comunicação e igrejas evangélicas. Todavia, em troca de privilégios ainda maiores, milhares de juízes aderiram ao golpe de 2016. São eles que proferem as decisões ilegais que legitimam a perseguição dos representantes do povo. Os adversários do neoliberalismo estão sendo arrastados das suas casas para as Delegacias da PF e delas para os presídios. Em algum momento eles comerão a ser torturados ou executados no caminho.
As universidades públicas já deixaram de ser consideradas santuários de tolerância política e ideológica. Os juízes que se recusaram a perseguir os cidadãos por razões políticas estão sendo processados com rigor pelo CNJ, órgão que se recusa a ver e punir os abusos praticados pelos juízes e desembargadores que usam o processo para torturar desafetos e condenam réus apenas porque eles foram acusados. O Deus ex machina foi incorporado pelo MPF no exato momento em que um PGR disse que aquela instituição é a favor do mercado, muito embora ela tenha como finalidade precípua a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis como prescrito no art. 127, da CF/88.
A desordem jurídica não produz segurança, bem-estar ou desenvolvimento econômico. Os russos sabem exatamente o que eles foram obrigados a pagar durante o período de caos que sucedeu à queda da URSS. A população empobreceu e adoeceu, a economia encolheu, o alcoolismo se transformou numa epidemia, a taxa de natalidade regrediu e a expectativa de vida declinou. Eles conseguiram superar aquele momento porque encontram forças para se unir em torno de um líder capaz de dizer não ao mercado.
Em nosso caso, o único líder político capaz de desafiar o Deus ex machina está sendo destruído. O resultado será devastador e não só para os brasileiros mais pobres. Quando o espaço político se fecha para as vítimas do mercado, a violência se torna mais comum e incontrolável. Observem atentamente a região metropolitana do Rio de Janeiro, ela é uma síntese de todas as cidades brasileiras em alguns em alguns anos.
A separação econômica e racial, mais visível no Rio de Janeiro do que em qualquer outro lugar, permite ao BOPE exterminar suspeitos nas favelas sem que os traficantes ricos e brancos da orla marítima corram qualquer risco. Alguém ficará surpreso quando o BOPE passar a exterminar lideranças populares que se opõe ao neoliberalismo? Quantos BOPES terão que ser criados para que o Deus ex machina consiga pacificar milhares de cidades brasileiras que estão sendo condenadas à dinâmica de separação, exclusão, humilhação e violência genocida entre pobres/pardos/negros/índios e brancos ricos e remediados?
Quando era criança eu não conseguia entender a violência das Brigadas Vermelhas contra os juízes italianos. Após o golpe de 2016, os juízes brasileiros colocaram o mercado acima da Lei para desfrutar novos privilégios. Isto não significa, porém, que eles poderão se sentir mais seguros. Muito pelo contrário. Eles agem como se fossem inimigos do povo e em algum momento passarão a ser vistos não como juízes e sim como inimigos.
Nos dias de hoje eu não ficarei surpreso se a Constituição Federal que os juízes rasgaram for incapaz de protege-los. O mercado, porém, é uma divindade impessoal, sanguinária e terrível. Desde que possa continuar devorando uma parcela da população o Deus ex machina não se importará com este ou aquele juiz. Afinal, será sempre possível selecionar e empossar novos juízes para substituir aqueles que forem moídos por uma realidade programaticamente violenta que não pode ser pacificada pelo Poder Judiciário.
Artigo publicado originalmente em https://jornalggn.com.br/blog/fabio-de-oliveira-ribeiro/o-poder-do-mercado-e-a-impotencia-dos-juizes-por-fabio-de-oliveira-ribeiro