Após o pesadelo, que tal uma primavera? Luiz Werneck Vianna
O campo democrático conseguiu instalar a política e suas instituições como lugar de resolução de conflitos políticos
A longa noite de pesadelo que por tanto nos afligiu, expostos à ameaça do ressurgimento do fascismo, patologia política preservada em estado latente a partir do Estado Novo de 1937 – este, claramente fascista – manifesta também no regime do AI-5 e reanimado pela apropriação do Estado por um golpe de fortuna de um aventureiro que se impôs a missão de devolver a vida essa infausta experiência, encontra seu fim nesses dias que anunciam a primavera.
A sociedade ainda mal desperta desses momentos de amargura que viveu indefesa, em meio a uma cruel pandemia, pela criminosa omissão de um governo que conscientemente, por cálculos políticos canhestros, ignorou a gravidade da situação e nos deixou o legado macabro de quase 700 mil mortos.
Decerto que o desenlace da tragédia política que nos acometeu ainda ronda o terreno da imprevisibilidade, e poderosas resistências já se antepõem aos anseios democráticos que animam cada vez mais vastos setores da vida social, especialmente entre os jovens, as mulheres e os que procedem do mundo do trabalho, particularmente estes atingidos diretamente em seus direitos e no rebaixamento de suas condições de vida. O patriarcalismo com que nascemos como sociedade está ferido de morte, e de nada importam os esforços do atual governo em lhe assegurar continuidade, uma das peças do arsenal autoritário desde sempre.
Falta, de fato, um percurso, se curto ou longo não dá para antecipar, para que se estabeleça a plenitude da ordem democrática, mas são favas contadas que o surto fascizante que nos veio das ações e projetos do governo já foi debelado pela ação da opinião pública e pela vigorosa resistência das instituições, em particular das nossas altas cortes de justiça, que asseguraram a preservação do calendário eleitoral.
Afastadas do horizonte imediato da política as maquinações golpistas que visavam constituir um poder sem freios a Bolsonaro como chefe da nação, orientam-se, em um movimento defensivo, no sentido de uma composição com a direita tradicional a fim de buscar pela via eleitoral uma alternativa de sobrevivência. Nesse sentido, passa a contar com as forças agrupadas no Centrão, tradicionais bastiões dos privilégios originários da nossa formação de uma sociedade criada a partir das grandes explorações escravistas.
Tal deslocamento do plano conspirativo, sede principal dos seus esforços nos seus primeiros anos, para o terreno eleitoral, importou uma brusca alteração de rumos em terreno ignorado, como patente na cornucópia que instalou, nas vésperas das eleições, com a finalidade de colher os votos da população de baixa renda.
Nesse terreno, as hostes bolsonaristas contarão como estrategistas os políticos tradicionais especializados no controle das populações retardatárias do nosso hinterland e de militares, jejunos em competições eleitorais de massa. Verdade, que no coldre ao alcance das mãos, como no último 7 de setembro, cogitam guardar sua bala de prata para eventual uso quando todos os caminhos estiverem fechados à sua reprodução, mas essa seria uma estratégia de altíssimo risco, inclusive em razão da atual conjuntura internacional, sobretudo em nosso continente.
Esse deslocamento, por si só, significou uma vitória do campo democrático vindo a instalar a política e suas instituições como lugar de resolução de conflitos políticos, rebaixando as possibilidades dos caminhos sediciosos com que o bolsonarismo ainda flerta.
Passo a passo, a coalizão democrática amplia seu campo de influência, como agora com a inclusão de Marina Silva, com seu histórico de lutas em favor da democracia, e já se anuncia a auspiciosa adesão à candidatura Lula-Alkmin de personalidades e políticos da esquerda do PDT de Brizola que pode vir a garantir a vitória em primeiro turno, selando com pá de cal o destino da eleição.
Faltam poucos dias, a vitória está ao alcance das mãos, e com ela vão se descerrar as vias em direção à conclusão do processo de democratização da sociedade que deixamos a meio caminho nos idos dos anos 1980, desbastando até suas raízes mais fundas o legado do que ainda resta da má conformação da nossa sociedade filha de um patrimonialismo que se assentou sobre uma base latifundiária e escravista.
*Luiz Werneck Vianna é professor do Departamento de Ciências Sociais da PUC-Rio. Autor, entre outros livros, de A revolução passiva: iberismo e americanismo no Brasil (Revan).
Artigo publicado originalmente em Após o pesadelo, que tal uma primavera? – A TERRA É REDONDA (aterraeredonda.com.br)