Bolsonaro é a catapulta para a tonga da mironga do kabuletê! Por Marconi De Souza Reis
Todas as noites eu costumo ouvir sinfonias e óperas enquanto leio alguma coisa qualquer – poemas, romances, teoremas de geometria analítica, contos eróticos, revistas de decoração ou de filosofia, gibis, etc. –, das 19 às 23 horas, entre segunda e sexta-feira.
Na verdade, leio de 10 a 12 horas por dia, mas à noite a leitura tem um caráter apenas recreativo, um relax, daí que posso eventualmente substituí-la por um barzinho, um cinema, um teatro, ou uma partida bacana de futebol transmitida pela TV.
Esta semana interrompi esse lazer literário noturno para assistir às “entrevistas” dos candidatos à presidência da República, entre segunda e quinta-feira, das 20h30 às 21 horas, na TV Globo. E o fiz por insistência da minha esposa, que desejava ouvir as minhas críticas.
Eu pus aspas no substantivo feminino – “entrevistas” –, porque os dois apresentadores do Jornal Nacional podem ser qualquer coisa no jornalismo, exceto repórteres capacitados para questionar tecnicamente uma pessoa comum, que dirá candidatos a presidente da República.
Particularmente, sou grato a William Bonner, visto que, em setembro de 2003, quando derrotei todos os grandes meios de comunicação – TV Globo, Folha de S. Paulo, Isto É, O Globo e Estado de S. Paulo –, concorrendo ao Prêmio Tim Lopes, da Embratel, lá no Canecão (Rio de Janeiro), ele me disse:
– Amanhã vou falar do seu prêmio no Jornal Nacional.
E cumpriu a promessa, dando uma repercussão gigante à minha conquista, a ponto de eu receber quase uma centena de ligações telefônicas, minutos após Bonner divulgar a vitória da série de reportagens sobre os grampos ilegais perpetrados por Antonio Carlos Magalhães.
Não obstante a gratidão, preciso falar a verdade, qual seja, de que ele e a parceira Renata Vasconcelos são péssimos enquanto repórteres. Mas esse não é o tema dessa crônica, embora substrato imprescindível, porque os vi trocando insultos com Jair Bolsonaro, e como se sabe, “quem fala demais dá bom dia a cavalo”.
Ao final da entrevista com esse candidato, minha esposa comentou:
– Bolsonaro é realmente um ruminante.
– Não. O ruminante é quem vota nele. Bolsonaro é um monogástrico, respondi.
– Não entendi…
– A ovelha e a vaca são ruminantes, enquanto o cavalo, o jumento e o burro, por exemplo, são monogástricos. Você aprendeu isso lá nos anos 80.
– Aprendi, mas esqueci…, desculpou-se.
– Lembre-se que nos rebanhos (ovelhas e vacas, por exemplo) há um processo de ruminação, porque o estômago é complexo, com quatro câmaras, o que leva muito tempo para digerir a celulose.
– E nos cavalos, jumentos e burros?
– Esses são monogástricos, porque apresentam estômago simples, um ceco funcional com bactérias para digerir rapidamente a celulose.
– Onde é que você quer chegar?, perguntou-me com aquele olhar de quem só me suporta há 30 anos pelo fato de a convivência ser uma eterna universidade pública internacional.
– Olha, o processo complexo de ruminação requer um tempo ao rebanho para digerir a celulose, e os ruminantes fazem isso à noite, com a possibilidade, portanto, de contemplar a lua e as estrelas. No caso dos monogástricos, não. O estômago é simples, daí o porquê de os cavalos serem reativos; as ovelhas e vacas, quase nunca.
– Compreendi… É aquela sua teoria de que boa parte dos seres humanos do planeta raciocina/reage quase no mesmo patamar dos bichos, e que entre esses também há níveis diferentes, no mínimo, de percepção.
– Exatamente. Os eleitores de Bolsonaro, assim como todos os ruminantes de ultradireita no planeta, representam o aprofundamento da “moral de rebanho”, a que se refere Nietzsche.
– A complacência, o comodismo, o “amém” dos rebanhos.
– Isso. Você teve essa experiência comigo educando os nossos filhos, e se pudéssemos retornar no tempo, lapidaríamos melhor os pimpolhos, não é mesmo?
Nesse momento da nossa conversa, ela confessou como foi vital a educação estética que empreendi aos nossos filhos, e admitiu que estava equivocada quando revelava posição contrária à minha proibição aos jogos eletrônicos de computador, na adolescência dos nossos filhos.
Ora, os jogos eletrônicos nos computadores aprofundam a “moral de rebanho” em todas as classes sociais. Eu fui estudante de Processamento de Dados na Ufba, nos anos 80, e sei como o binarismo dos algoritmos vai fazer você raciocinar, em última instância, como alguém que preenche e se comunica por formulários.
As crianças e adolescentes de hoje, que leem quase nada, tornam-se presas fáceis desses jogos eletrônicos, e vão ser adultos programados para apenas dizer “sim” ou “não”, “certo” ou “errado”. Aliás, isso explica, inclusive, porque há muitos desses jovens entre os ruminantes adeptos de Bolsonaro.
– E o monogástrico Bolsonaro representa o quê nesse contexto?, perguntou a minha esposa.
– Ele é o cavalo já devidamente adestrado. Caso vença as eleições, então os adestradores colocarão uma sela no seu dorso, e montarão nesse monogástrico para vaquejar o rebanho de ruminantes.
– Rapaz, é uma pena que você não esteja mais no jornalismo para orientar o grande público.
Nesse momento, retornei ao “espaço gourmet”, o local da nossa residência onde ouço sinfonias e óperas enquanto leio. E lá fiquei lendo um livro de poemas de Pablo Neruda, prêmio Nobel de Literatura, enquanto ouvia Liszt, para tentar detectar se, em algum verso do poeta chileno, ocorreu-lhe a previsão do golpe de Pinochet.
Meia hora depois, minha esposa chegou no “espaço gourmet” com uma dúvida e uma suposição, mas, antes que ela as esboçasse, eu lhe pedi uns segundos de sua atenção para ouvir esse pequeno poema de Neruda:
“Quero
Quero apenas cinco coisas…
Primeiro é o amor sem fim
A segunda é ver o outono
A terceira é o grave inverno
Em quarto lugar o verão
A quinta coisa são teus olhos
Não quero dormir sem teus olhos.
Não quero ser… sem que me olhes.
Abro mão da primavera para que continues me olhando”.
– Caramba. Que coisa linda, meu Deus!, exclamou, encantada.
– O lirismo atinge o clímax quando os versos são simples, expliquei.
– Sem dúvida.
– Olha, os chilenos são mais civilizados do que nós, daí que possuem dois prêmios Nobel de Literatura, com a poetisa Gabriela Mistral, em 1945, e o poeta Pablo Neruda, em 1971, enquanto nós, nessa seara, estamos entregues ao “vagabundinho” de Dona Flor. Seria o maior erro da Academia Sueca, caso ela concedesse o Nobel a Jorge Amado, que nem sabia escrever o português corretamente, comentei.
Ela caiu na gargalhada, e já veio com cobrança:
– Você me prometeu que iríamos a Santiago em outubro próximo.
– Vamos ver…, desconversei.
Minha esposa trouxe então sua dúvida:
– Mas o Datafolha informou que há eleitores de Bolsonaro com nível superior, e até com mestrado e doutorado.
– São pessoas que sofreram abalos psíquicos profundos em alguma fase de suas vidas, e ao invés de apresentarem um vitiligo, por exemplo, perderam a capacidade plena de raciocínio, e assemelham-se agora aos ruminantes.
– Dê exemplos…
– A pessoa que perdeu um filho violentamente ou foi abandonado pelos pais, por exemplo. A pessoa que sofreu traição conjugal com ampla divulgação, ou que teve um baque financeiro irrecuperável.
– Você me disse uma vez que a psicologia de linha behaviorista explica esse tipo de reação psíquica.
– Isso. Com ódio momentâneo, ninguém raciocina bem. E se esse ódio é patológico, endêmico, a compreensão passa a ser próxima à de um ruminante ou, até pior, próxima à reação de um monogástrico.
Logo em seguida, ela trouxe uma suposição, qual seja, de que a eleição de Bolsonaro iria atirar o Brasil ao passado do governo de Collor de Mello, posto que, exatamente naquela época, o ministro Fernando Magri comparou o ser humano aos cães, ao afirmar: – “Cachorro também é gente”.
– Nem pensar… No governo Collor, lembre-se, o Brasil tornou-se signatário de importantes direitos fundamentais internacionais, reagi.
– Com Bolsonaro será então pior?, questionou-me.
– Sem dúvida. Perceba que o monogástrico e seus ruminantes odeiam os direitos humanos. Ora, eles realmente não se veem como humanos. Compreende?
Ela, outra vez, caiu na gargalhada, e repetiu a frase manjada:
– Você é foda!
Bem, eu fiquei em silêncio – a minha modéstia não me permite, jamais, afirmar que sou isso ou aquilo –, e então sugeri que subíssemos aos nossos aposentos para uma deliciosa foda.
Antes de sairmos dali, porém, ela insistiu na questão:
– Então, se Bolsonaro vencer a eleição, ele vai atirar o país aonde?
Eu refleti por uns segundos, e cravei um provérbio, um aforismo:
– Bolsonaro é a catapulta para jogar o nosso país na tonga da mironga do kabuletê.
– Caramba, vamos voltar à década de 1970, reagiu, dando-me um beijo e cantarolando alguns versos da canção de Vinicius, que o poeta carioca compôs para xingar o governo militar monogástrico:
“Você que ouve e não fala
Você que olha e não vê
Eu vou lhe dar uma pala
Você vai ter que aprender
A tonga da mironga do kabuletê”
Subimos então para nossa suíte, transamos, dormimos, e na manhãzinha do dia seguinte escrevi essa crônica, com a certeza de que a vida foi muito bacana comigo, a ponto de nenhum presidente da República ser capaz de interferir em nada nas nossas vidas.
Não obstante, enquanto “homo sapiens”, e honestamente intelectualizado, sinto-me na obrigação de decodificar, para quem tem paciência de ler os meus textos, o que acontece no pasto da Terra.

