Aldeia Nagô
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É possível ser feliz num mundo infeliz? por Leonardo Boff

3 - 4 minutos de leituraModo Leitura

Não podemos calar a pergunta: como ser feliz num mundo infeliz? Mais da metade
da população mundial é sofredora, vivendo abaixo do nível da pobreza. Há
terremotos, tsunamis, furacões, inundações e secas.


 No Brasil apenas 5
mil famílias  detém 46% da riqueza nacional. No mundo 1125 bilionários
individuais possuem riqueza igual ou superior à riqueza do conjunto de paises
onde vive 59% da humanidade. O aquecimento global evocou o fantasma de graves
ameaças à estabilidade do planeta e ao futuro da humanidade. Diante deste
quadro, é possível ser feliz? Só podemos ser felizes junto com
outros.

 Importa reconhecer que estas contradições não invalidam a busca
da felicidade. Ela é permanente embora pouco encontrada. Isso nos obriga a fazer
um discurso critico e não ingênuo sobre as chances de felicidade
possível.

 Na reflexão anterior sobre o mesmo tema, enfatizamos o fato de
que a felicidade sustentável é somente aquela que nasce do caráter relacional do
ser humano. Em seguida, é aquela que aprende a buscar a justa medida nas
contradições da condição humana. Feliz é quem consegue acolher a vida assim como
ela é, escrevendo certo por linhas tortas. Aprofundando a questão, cabe agora
refletir sobre o que significa ser feliz e  estar feliz.
Foi Pedro Demo, a meu ver, uma das cabeças mais bem arrumadas da inteligência
brasileira, que entre nós melhor estudou a "Dialética da Felicidade"(3 tomos,
2001). Ele distingue dois tempos da felicidade e nisso o acompanhamos: o tempo
vertical e o tempo horizontal. O vertical é o momento intenso, extático e
profundamente realizador: o primeiro encontro amoroso, ter passado num concurso
difícil, o  nascimento do primeiro filho. A pessoa está feliz. É um
momento que incide, muito realizador, mas passageiro.

 E há o momento
horizontal: é o que se estende no dia a a dia, como a rotina com suas
limitações. Manejar sabiamente os limites, saber negociar com as contradições,
tirar o melhor de cada situação: isso faz a pessoa ser
feliz.

 Talvez o casamento nos sirva de ilustração. Tudo começa com o
enamoramento,  a paixão e a idealização do amor eterno, o que leva a querer
viver junto. É a experiência de estar feliz. Mas, com  o passar do tempo,
o amor intenso dá lugar à rotina e à reprodução de um mesmo tipo de  relações
com seu desgaste natural. Diante desta situação, normal numa relação a dois,
 deve-se aprender a dialogar, a tolerar, a renunciar e a cultivar a ternura sem
a qual o amor se extenua até virar indiferença. É aqui que a pessoa pode ser
feliz
ou infeliz.

Para ser feliz na extensão
temporal, precisa de invenção e de sabedoria prática. Invenção é a
capacidade de romper a rotina: visitar um amigo, ir ao teatro, inventar um
programa.  Sabedoria prática é saber desproblematizar as questões, acolher os
limites com leveza, saber rimar dor com amor. Se não fizer isso, vai ser infeliz
pela vida afora.

 Estar feliz é um momento. Ser feliz é a
um estado prolongado. Este se prolonga porque sempre é recriado e alimentado.
Alguém pode estar feliz sendo infeliz. Quer dizer, tem um momento
intenso de felicidade (momento) como o reencontro com um irmão que escapou da
morte. Como pode ser feliz (estado) sem estar feliz (momento),
quer dizer, sem que algo lhe aconteça de arrebatador.

 A felicidade
participa de nossa incompletude. Nunca é plena e completa. Faço minha a
brilhante metáfora de Pedro Demo:"a felicidade participa da lógica da flor: não
há como separar sua beleza, de sua fragilidade e de seu fenecimento".

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