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O diabo dá a volta por cima e vira pop por Luiz Afonso Costa

3 - 4 minutos de leituraModo Leitura
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Muita gente costuma dizer que “é no detalhe que se esconde o diabo”. O que há de novo é que no Brasil, em pleno alvorecer do século XXI, o demo saiu da sombra e virou eminência pop, alavancado por seitas que o associam a tudo o que se opõe às suas conveniências… E de tanto exorcizarem o ente breoso, acabaram por ressuscitar a sua notoriedade.

 

O que mais nos faltava? Os vendilhões superlotaram o templo e ficou tudo confuso… No parlamento que se diz laico, um representante do neofundamentalismo impõe o seu modelo de direitos humanos e manipula a atenção da mídia para reintroduzir valores medievalescos como a homofobia, o racismo e a intolerância religiosa em um país marcado pela miscigenação e reconhecido pela afabilidade, pluralismo e ludicidade de sua gente.

 

Perplexo com a algazarra que esse pessoal faz nos templos, nas ruas e agora nos parlamentos, parei pra pesquisar. Fui googlando na trilha do radicalismo até encontrar a figura do profeta persa Mani, que, no século III, fundou a doutrina da “verdade completa”, mais tarde apelidada de maniqueísmo. Ele propunha-se a purificar as grandes religiões, “que se haviam degradado”, e reservava o Céu apenas aos eleitos que praticassem os rigores ascéticos de seus mandamentos.

Simples assim: a doutrina de Mani divide o mundo entre “bom”, ou Deus, e “mau”, ou o Diabo, excluindo o diferente. Com a popularização do termo, maniqueísta passou a ser um adjetivo para toda doutrina fundada nos princípios opostos do Bem e do Mal, como instâncias absolutas. Estava aberto o caminho para os pregadores midiáticos e a lavagem cerebral em escala massiva, praticada hoje em bases científicas e nada medievais.
A irreverência, outro traço brasileiro que satiriza os pretensiosos, encontrou um osso duro de avacalhar. Por trás de tudo está a ineficiência da escola pública, nervo exposto do nosso emperramento sociocultural e chave para a vulnerabilidade à conversão fanática, que tem campo fértil entre jovens e adultos que não tiveram oportunidades para desenvolver, por meio da educação de qualidade, o livre arbítrio e a cidadania.
Mergulhei mais fundo no Google, em busca de algum território aprazível entre os extremos, uma terra do sol entre Deus e o Diabo… e encontrei os jézidas, habitantes ancestrais dos fundões do Cáucaso, que adoravam o demônio na forma de um pavão dourado. Eles acreditavam ser necessário apaziguar igualmente Deus e o demônio, mas como Deus é mais aplacável, precisavam dedicar mais tempo ao demônio. Este, entretanto, já havia se arrependido das maldades e suas lágrimas apagavam o fogo eterno do inferno.
Como se vê, os primitivos jézidas cultuavam um diabo menos radical que o do fundamentalismo made in Brazil, que opõe o bem e o mal como instâncias absolutas e sem gradações intermediárias, não reconhece as diferenças nem admite o contraditório, e persegue as religiões de matriz africana como “coisas do diabo”, ignorando que o exu dos candomblés se notabiliza por um perfil complexo e bastante compreensivo ante a polimorfia humana.
Cá pra nós, se o diabo se tornou pop, deixou de residir nos detalhes e a coisa menos santa que encontrei no Google foram as imagens surpreendentes de mansões e limusines dos líderes de algumas seitas sustentadas pelo dízimo dos pobres. Não fica difícil concluir que o figurino mistificador e oportunista atribuído ao “senhor das trevas” veste muito bem os fanatizadores profissionais que lhe atiram pedras.

Enfim, em sentido inverso à doutrina dos jézidas, não é bastante pedir ao bom Deus que nos livre das tentações do diabo. É importante sermos protegidos, também, dos que usam o seu abominado nome em proveito próprio, a pretexto de combatê-lo. (Lula Afonso, em fase iconoclasta).

Artigo publicado originalmente em http://wagau.blogspot.com.br/2013/06/o-diabo-da-volta-por-cima-e-vira-pop.html

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