Aldeia Nagô
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A cidade jovem por Antonio Risério

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Antonio_Risrio
A primeira coisa que digo às pessoas de minha geração (por volta dos 60 anos de idade), com relação às manifestações pela tarifa zero no sistema público de transporte, é: parem de ser nostálgicos e de idealizar seu próprio passado.

Porque as pessoas usam 1968 como critério. É uma tolice. Naquela época, embora nos achássemos “marxistas”, alimentávamos socialismos utópicos. Hoje, a conversa é outra. A luta não é explicitamente contra a “ditadura dos patrões”, como a Polop gritava na década de 1960.
Se meus amigos de esquerda, teleológicos ou escatológicos, não entendem o que está acontecendo, menos ainda nossos governantes, independentemente de suas posições no tabuleiro ideológico de nossos dias. Claro que eu jamais esperaria qualquer coisa de Alckmin. Aquilo é um direitista incorrigível.
Direitista, provinciano e incapaz até dos voos mais rasteiros do pensamento. Mas Fernando Haddad parecia pássaro de outra plumagem. Pelo visto, não é. Ele não tinha de ficar “monitorando” as coisas desde Paris. Tinha de ter tomado um avião e ido para as ruas encontrar a garotada. Longe disso, Haddad se revelou um hesitante, quase um banana. Ficou mais parecido com Alckmin do que com o estudante que ele foi, nos tempos do Largo de São Francisco.
Deitado no sofá da sala à meia noite, em busca de um improvável sono, zapeando canais de televisão, vejo um primeiro horizonte. Um documentário sobre o que está acontecendo na Turquia. É engraçado. Há mais ou menos um ano atrás, eu tinha uma boa dose de admiração pelo primeiro-ministro turco, com aquele nome que mais parece marca de remédio: Erdogan. Achava que Erdogan conduzia o país no caminho da democracia, seguindo o velho Kemal Atatürk. Mas me enganei. Arrogante e autoritário, ele começou a promover uma islamização da Turquia. A peça mais reacionária possível.
Em Ancara e Istambul, a população se revoltou. Não é um movimento que tenha se espraiado pelo país. É um lance essencialmente urbano, centrado nas duas principais cidades turcas. E o que vejo no documentário: pessoas de várias idades – mas, sobretudo, jovens – que, em vez de gritar palavras de ordem contra a islamização, dizem que a cidade é deles e não de Erdogan, do Islã ou de qualquer ditadura: “Istambul é nossa!”. Esta é a coisa mais profunda que um cidadão pode dizer: a cidade é minha, a cidade é nossa. E logo em Istambul, um dos lugares mais lindos do mundo.
E é justamente isso o que sinto que moradores de São Paulo estão dizendo: São Paulo não é dos empresários de ônibus e dos políticos que eles bancam (juntamente com o setor imobiliário) – São Paulo é nossa. O que essa garotada quer, com o apoio de muitos mais velhos, é o direito constitucional de ir e vir. O direito de se deslocar, de se mover. Em suma: o direito à cidade. Se cada cidade do planeta se manifestar assim (Barcelona é nossa! Berlim é nossa! São Paulo é nossa!), o mundo muda.
Pouco importa que o ponto de partida seja a passagem de ônibus? Não. É significativo. É por onde a população se move. Claro que a barra ainda é mais pesada do que se pensa: segundo o IBGE, 37,3% dos habitantes do Brasil andam a pé, por não terem dinheiro para andar de ônibus, trem ou metrô. É um índice altíssimo.
Anda mais gente a pé, no Brasil, do que em transporte coletivo (29,1%) ou carro individual (30,4%). Querem maior atestado de exclusão? E essa luta é antiga. Há quase uma tradição, no país, da população protestando contra aumentos no preço das passagens. É que isso aqui é um país de gente muito pobre, ao contrário do que dizem tantas propagandas públicas e privadas.
Houve um quebra-quebra baiano em inícios da década de 1980. E o jornalista Gonçalo Júnior me lembra que o Movimento Passe Livre, que hoje toma as ruas de São Paulo, nasceu na Bahia. Lê-se na internet: “A revolta popular que originou o Movimento Passe Livre aconteceu em Salvador, capital da Bahia. Em 2003, milhares de jovens, estudantes, trabalhadores e trabalhadoras fecharam as vias públicas protestando contra o aumento da tarifa. Durante 10 dias, a cidade ficou paralisada.
O evento foi tão significativo que se tornou um documentário, chamado ‘A Revolta do Buzu’. As mobilizações tiveram fim quando entidades estudantis tradicionais (como a UNE e a UJS) se colocaram como lideranças da revolta que não haviam iniciado e foram negociar com a prefeitura em sala fechada”. Fala-se, então, de uma espécie de traição feita por “entidades estudantis tradicionais”, coisa que também ajuda a entender a movimentação de agora, em sua recusa de velhas normas e canais.
Acho apenas ridículo quando me dizem que a garotada que luta contra o aumento da tarifa não precisa pegar ônibus ou metrô. É uma garotada classemediana, motorizada. Se isso é verdade, melhor ainda. Significa que a juventude brasileira de classe média está recuperando, enfim, sua noção de solidariedade, que parecia irremediavelmente perdida. Lembro então aos saudosistas que, na década de 1960, lutávamos até por reforma agrária.
E nenhum de nós tinha sequer um palmo de terra fora dos muros da cidade. Eu costumava dar esse exemplo para falar de uma solidariedade que julgava não mais existir. E agora me vejo na feliz obrigação de retirar o que dizia. É simplesmente maravilhoso que jovens privilegiados lutem pelo direito de todos se moverem gratuitamente em nossos espaços urbanos.
Agora, que ninguém pense, também, que a grande questão nacional é o preço da passagem em nossos sistemas supostamente públicos de transporte. Não é. A insatisfação é bem mais generalizada. Talvez a gente possa falar de uma espécie de insatisfação difusa, disseminando-se pelo conjunto da sociedade. Uma insatisfação geral com o país depois das celebrações narcísicas do “take of” anunciado pela Economist em 2010.
É na pauta dessa insatisfação, de resto, que ouço a vaia em Dilma Rousseff no estádio Mané Garrinha, em Brasília, na abertura da Copa das Confederações. Claro que nós, brasileiros, sempre gostamos de vaiar autoridades. Há um desrecalque sociologizável nisso. Mas não foi só. A vaia em Dilma expressou uma reação de alta classe média contra a situação atual do país. Situação atual que também mobiliza o protesto de estudantes e trabalhadores, com apoio de donas de casa.
Continuamos com desigualdades sociais escandalosas. O fantasma da inflação ronda feiras e “supermercados”. O dinheiro é pouco. Mas há a enxurrada de milhões de reais na corrupção dos políticos. A gastança do governo. E o esbanjamento em função de uma Copa das Confederações que será seguida por uma Copa do Mundo.
Em Belo Horizonte, no dia de um jogo medíocre (Nigéria e Taiti), milhares de manifestantes tentam se aproximar do Mineirão, com balões amarelos, cartazes e faixas. Querem dinheiro para a saúde, por exemplo. Querem dinheiro para atender às necessidades básicas e reais da população.
Mas há mais. O Brasil parece querer uma nova hora e um novo senso do fazer político. José Dirceu percebeu isso, publicando artigo sobre o assunto. Diz ele que é hora dos governos do PT mudarem sua forma de se comunicar e se abrirem para novos projetos políticos. Mas se há uma coisa que essas manifestações deixam para trás são a ronda de fantasmas como Dirceu.
E se os governos se abrirem para as novas formas da política, que agora se esboçam nas ruas, vão ser subvertidos em todas as direções e até mesmo desde dentro. Haddad, por exemplo, vai ter de ser um outro cara em São Paulo e não o prefeito canônico e tradicional que tem sido até aqui.
Mas vamos ampliar o foco. O Brasil, hoje, parece um país triplamente acomodado. Acomodado, no âmbito governamental. Acomodado, no terreno de sua oposição política. Acomodado, no conjunto da sociedade. “Acomodado” no sentido da carência de uma nova visão estratégica e de projetos correspondentes.
É preciso reencontrar o rumo da transformação. E quem sabe essa meninada nas ruas nos ajude a fazer isso: a recuperar a ambição nacional, no sentido mesmo do clichê de ser um país menos injusto e que possa se ver como nação plena.
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