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Capitalismo, coronavírus e cultura. Entre a pandemia e o pandemônio. Por Antônio Albino Canelas Rubim

9 - 13 minutos de leituraModo Leitura
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Vivemos tempos inusitados. Quem poderia imaginar que hoje milhões de pessoas em todo mundo estivessem de quarentena, quase isolados fisicamente do mundo? Parece um enredo de ficção, uma daquelas

narrativas bem distantes da realidade. Mera fabulação elaborada talvez para aterrorizar, talvez para encantar os mortais e os imortais. O improvável aconteceu. O que parece obra de ficção se tornou realidade. Uma realidade inesperada. Uma dura realidade. Uma realidade que nos retira da realidade, de todas os registros que estruturam nossas vidas, nosso cotidiano, com suas regras imperativas. De uma hora para outra, bem rápido, a rotina, que nos orienta no mundo e na vida, sem mais, foi despedaçada. Quase nada restou dela. Não creio que ela tenha deixado saudades para muitos.

Tal cotidiano era obrigatório, independente de gostos e sentimentos. Simplesmente existia como estrutura organizada, como algo naturalizado, que impedia qualquer lampejo de alternativas. Nem a irritação, muitas vezes suscitada, nem o cansaço, muitas vezes presente, eram capazes de causar incômodos e estranhamentos. A naturalização do modo de vida o tornava único, automático. Como peixes vivíamos na água em naturalidade oceânica.

O capitalismo, depois de produzir seu modo de produção especificamente capitalista, destruindo as maneiras de produzir anteriores, alterou em profundidade o modo de vida. André Granou, decorridos quase 50 anos, anotou tal empreitada em seu livro Capitalismo e modo de vida. Em lugar da vida rural, com sua mansidão de ritmos e tempos, outro modo de viver o mundo cada vez mais urbano. Uma vida acelerada e aglomerada; de pressa constante; de falta de tempo para tudo; de busca desenfreada de consumir o necessário e para além do necessário; de impessoalidade e desatenção com os próximos; de concorrência desenfreada em todos os poros da sociedade. Prisioneiros, muitos sentem saudades da agitação, do esgotamento e da pressa. Qualquer calmaria parece incomodar.

Este modo de viver o mundo, criado pelo capitalismo a sua imagem e semelhança, desmoronou, ainda que temporariamente, da noite para o dia ou do dia para a noite, tanto faz. O baque parece brutal. Não só na economia e no aumento maior da desigualdade e da pobreza, faces onipresentes do capitalismo neoliberal, mas, com impacto imediato no modo de vida, radicalmente alterado pela prescrição da quarentena.

Como viver o novo cenário desconhecido? Um ambiente que coloca o lugar de moradia no centro da vida deixando em segundo plano, para muitos, o local de trabalho e/ou de estudo. Além do quase cancelamento do acesso aos espaços públicos de circulação e de vivência, todos eles já deprimidos pela sanha capitalista de controle e de exploração, pelo uso abusivo dos automóveis e pela insegurança pública. O estudo, o trabalho, o lazer fora do lugar de habitação agora estão todos eles obstruídos.

A quarenta, entretanto, é profundamente desigual, como são as condições de existência no sistema capitalista. A realização e a percepção da quarentena, por conseguinte, tornam-se também disformes. Para muitos, o desconforto de muitos amontoados em pequenos cômodos de uma casa pequena, sem garantia da sobrevivência, devido à informalidade do trabalho ou mesmo ausência do emprego, além do limitado acesso às redes digitais e suas modalidades midiáticas de televivência, de vida à distância. Para poucos, o conforto de residências amplas, acolhendo poucos, com sobrevivência mais que assegurada e com múltiplas possibilidades de televivência. Entre tais polos, talvez extremados, uma múltipla diversidade de situações existenciais. A quarentena será muitas a depender das condições sociais e econômicas de vida. De modo semelhante, as percepções acerca da quarentena igualmente serão marcadas à ferro e fogo pela maneira diferenciada de viver este momento singular da vida.

A experiência vivenciada da quarentena funciona como chave de leitura da mudança radical, ainda que temporária, do modo de vida. A quarentena pode ser sentida como momento denso de aflições, apreensões e atritos (familiares) ou como momento prazeroso de retomada da convivência familiar e de ruptura com o ritmo veloz e de tensões, imanentes à lógica de vida capitalista. Entre estes dois polos, novamente extremados, uma gama variada de maneiras de viver a quarentena.

No pós-pandemia, o retorno ou não ao modo capitalista de vida, com ou sem alterações, com pequenas ou grandes mudanças, depende da maneira como as pessoas, em sua diversidade, vivenciaram a singular experiência. Condições satisfatórias de viver esta difícil experiência ou condições degradantes de passar por ela determinarão a aderência ou não a um modo diferente da vida no capitalista. Caso a solidariedade social se estabeleça, criando laços novos e mais humanos entre as pessoas, as chances de mudança se amplificam. Caso a experiência seja vivida como um salve-se quem puder, a perspectiva de retorno ao passado, ao estressante e competitivo modo de vida capitalista, será inevitável. A presença ou não de políticas públicas para acolher as pessoas nesse inusitado instante de vida torna-se vital para o que vai ocorrer no pós-pandemia.

O pós-quarentena deste modo será sobredeterminado pela atuação competente das forças políticas, sociais e culturais que se movimentarem para dar conta do cuidado com as pessoas, em especial aquelas em situações mais vulneráveis, como as amplas populações brasileiras, que sobrevivem em degradantes condições de moradia e vida nas periferias urbanas e no meio rural. Tais atitudes e tais políticas serão vitais para acenar e fazer crer que outros modos de vida mais amorosas com os humanos e o meio-ambiente são possíveis. O papel do estado e suas políticas públicas aparece com centralidade, inclusive por sua capacidade de amenizar o provável alastramento da desigualdade e da pobreza, decorrentes da quase inevitável recessão econômica que virá no pós-pandemia.

O estado parece ser outro tema recorrente. Muitos anotam que na crise de saúde e econômica em que estamos submetidos fica nítido os limites de atuação do chamado mercado, ente neoliberal todo poderoso. Na crise, o estado é lembrado e chamado, em todos os países, neoliberais ou não, para socorrer a sociedade, as pessoas e as empresas. Neste momento, o recurso ao estado e às suas políticas públicas torna-se quase consensual. A necessidade de políticas públicas se consolida socialmente, a exemplo das tão agredidas políticas de saúde pública, com seu Sistema Unificado de Saúde (SUS), e das políticas públicas de pesquisa científica, tão perseguidas pela gestão Messias Bolsonaro. A afirmação da necessidade do estado e de políticas públicas e da incapacidade do mercado para resolver questões de grande envergadura, como pandemias e crises, marca tais instantes da história.

Nada assegura, entretanto, que este imaginário pró-estado e políticas públicas perdure no pós-crise e pós-pandemia. A crise econômica mundial, desencadeada a partir de 2008 nos Estados Unidos, para tomar um exemplo recente, demonstrou que o recurso abusivo ao estado para socializar os prejuízos e salvar grandes empresas, posteriormente não implicou em nenhuma mudança na visão neoliberal. A utilização desenfreada do estado e dos recursos públicos em nada mudou a postura neoliberal de defesa do estado mínimo. Nos tempos “normais” nada de estado ampliado para socializar os gigantescos lucros das grandes empresas multinacionais e, em especial, do capital financeiro.

Por conseguinte, nada assegura que o reconhecimento da importância do estado e das políticas públicas hoje existente no Brasil e em outros países seja garantia de uma mudança de longo prazo na maneira de percepção social do estado. O discurso neoliberal não se constrange em hipocritamente defender o estado mínimo e recorrer ao estado todas as vezes que as crises e as pandemias demonstram a incapacidade do mercado em enfrentar tais situações.

A capacidade camaleônica do neoliberalismo deriva, em boa medida, do seu controle dominante dos meios de produção e distribuição de bens simbólicos em nível planetário e nacional. Tal domínio impõe narrativas sempre favoráveis e fiéis do neoliberalismo. Suas contradições e erros são apagados a todo instante. Seus sucessos são vangloriados, mesmo que eles sejam à custa do aumento gigantesco das desigualdades sociais. O controle internacional e nacional das mídias pode, passada a pandemia, simplesmente invisibilizar toda atuação do estado e das políticas públicas e esquecer a incompetência do mercado em momento tão delicado da vida da sociedade.

Assim, não se deve nunca esquecer outro dado onipresente na contemporaneidade: a sempre presente sobredeterminação das narrativas acionadas sobre a realidade e a(s) quarentena(s) pelos meios de produção e distribuição de bens simbólicos. Tais meios envolvem a vida e os humanos na atualidade e fixam sentidos para o mundo, por sua capacidade de reiteração da agenda de temas a partir dos quais dá visibilidade ao mundo. Acrescente-se a fabricação constante de notícias orientadas ideologicamente e até falsas, de interpretações da realidade afinadas com os interesses das classes dominantes, além da utilização arbitrária de robôs distorcendo os processos de “comunicação”.

No caso brasileiro, a potência das mídias é gigantesca por um conjunto de variáveis, que marcam à ferro e fogo a realidade nacional. Dentre elas, destaque para a ausência da democratização da comunicação midiatizada. Poucas famílias monopolizam as grandes redes de comunicação e bloqueiam a pluralidade de visões sobre a realidade, atacando e inclusive silenciando todas as ideias divergentes das suas.

Mas, a quarentena tem propiciado aqui uma situação inusitada porque, diferente do que parece ocorrer no mundo. No Brasil as narrativas têm sido tensionavas pela disputa político-científico-ideológica acerca da necessidade ou não da quarentena na dimensão em que ela está sendo efetivada e considerada precisa no país. A irresponsável radicalização do tema deve-se ao jeito de fazer “política” de Messias Bolsonaro, que sempre entende a “política” como guerra, como embate para destruir inimigos, e nunca como divergências legitimas entre adversários e busca, quando possível, de construção de algum consenso, como requer a vida democrática.

Difícil fazer previsões sobre o tema do modo de vida, diante do inusitado da pandemia e da espetacular alteração planetária da vida e da morte. Elas irão depender muito da experiência vivida nos momentos de pandemia e de quarentena e das iniciativas político-sociais-culturais que forem desenvolvidas então. Caso elas tenham lastro em outro modo de viver o mundo, como uma maior presença da solidariedade, parece possível, mas não provável, que tenhamos alterações no modo de vida e, por conseguinte, na cultura, dado que o estilo de viver é componente vital da cultura. Alterações no modo de vida tensionando ou não, o modo capitalista de produção.

Agora vivemos um mundo de incertezas, ainda que balizadas pelas correntes de ferro do capitalismo neoliberal, que têm a imensa capacidade de não se mostrar enquanto prisão, mas fantasiosa liberdade, que só pode ser vivida por poucos e vedada a muitos.

Talvez uma das mudanças, que podem persistir no pós-pandemia, seja a ampliação e a consolidação das modalidades de televivência, já possíveis ou ainda a inventar. Vida, trabalho, economia, política, ciência, cultura e lazer, dentre outros, exercidos à distância estão dando um salto exponencial em tempos de coronavírus. Antes exercidos quase sempre por meio apenas da recepção, com baixos índices de interatividade, os meios de vida e de trabalho à distância tornam-se cada vez mais familiares para muitos que permaneciam avessos e distantes de tais potencialidades tecnologias. A interdição da convivência faz explodir a busca de interações à distância, aqui denominadas de televivências. O isolamento físico, requerido pela quarentena, abriu espaço para as várias interações desenvolvidas virtualmente.

A sociabilidade contemporânea confirma-se como distinta da moderna. Nela, a centralidade quedava nos espaços geográficos de convivência: praças, ruas, parlamentos, mercados, feiras, escolas, centros e eventos culturais etc. A contemporaneidade tem sua sociabilidade tecida sempre pela conjunção entre lugares geográficos e espaços ditos virtuais, produzidos pelas múltiplas redes midiáticas que envolvem o planeta. A singular sociabilidade característica da contemporaneidade nasce desta conjunção complexa e inédita na história da humanidade entre a convivência e a televivência, entre o local e o glocal, bem sintetizada na noção de glocal, tudo vivido de modo planetário e em tempo real.

A experiência que vivemos hoje, deprime os espaços de convivência e potencializa os espaços de televivência, ao impor, por prescrições de saúde, a quarentena. Desse modo, ela se configura como um instante também inusitado face à sociabilidade contemporânea, marcada pela conjunção estreita do convivencial com o televivencial. Tal disparidade de ênfases aponta como nunca as potencialidades do televivencial e todo seu aparato sociotecnológico que envolve hoje o planeta e o Brasil. Este, portanto, é um instante ímpar mesmo em termos de vivência contemporânea.

Cabe lembrar que a redes digitais, na sociedade capitalista, sofrem a imposição de seus interesses e determinantes. Suas imensas potencialidades de interatividade de muitos-para-muitos, tão celebradas em seus primórdios, se vêm cada vez mais enfraquecidas pela submissão a uma lógica de exploração mercantil, que leva à inevitável concentração. Some-se aos interesses de lucro o uso político das redes, que também buscam concentrar a emissão, inclusive por meio do uso abusivo de robôs, que distorcem as potencialidades democratizantes das redes.

Muitas são as tensões que permeiam o instante da quarentena. Alguns ficam mais em evidência no caso brasileiro: saúde pública x saúde privada; interesses públicos x interesses privados; políticas públicas x ausência de políticas públicas; comportamentos derivados do conhecimento, inclusive científico x terraplanismo, que constrói narrativa menosprezados os achados da ciência. Eles muitas vezes estão camuflados ou mesmo submersos à agenda saturada de coronavírus pela redundância da grande mídia brasileira, que não consegui informar a população de modo consistente sobre a pandemia. Hoje no Brasil, vivemos entre a pandemia, que invade perigosamente toda sociedade, e o pandemônio, causada a cada dia pelo desprezo à vida e ao conhecimento, instalados no (des)governo federal.

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