Dus cidades e um rio no meio por Lula Afonso
Conheço gente que não resiste ao banzo e viaja 120 quilômetros até Cachoeira, só para matar a saudade do pôr-do-sol no antigo cais da Navegação Baiana, onde aportava o vapor, hoje convertido em bar e mirante privilegiado na margem esquerda do Paraguaçu.
Deslumbramento é pouca palavra para sintetizar a emoção que acompanha a mudança das cores em um cenário que beira o surreal, de tão bonito. São marcantes, além do espelho do rio no meio, os monumentos seculares das duas cidades e o pitoresco casario que sobe o morro em São Félix, emoldurados pelo perfil elevado das encostas. E, ligando um lado ao outro, a legendária Imperial Ponte Dom Pedro II, com seus 365 metros em lastro de ferro trazido da Inglaterra em 1865…
Foi lá que o escritor encheu a cara num final de tarde, sentado a uma das mesas de tronco de jaqueira no mirante, recebeu num solavanco o caboco escrevinhador e mandou ver na caligrafia. Me entregou mais tarde, na galeria de arte fundada pelo poeta Damário Dacruz, os manuscritos amarfanhados e a autorização para publicar no Wagau, sob a condição de anonimato. Dito e feito, confira aí embaixo. (Lula Afonso).
“Final de tarde de inverno, na margem esquerda do rio Paraguaçu. Em uma mesa de bar sobre a estrutura do velho cais onde os vapores atracavam, contemplo sem pressa o verde das encostas sendo pincelado pelo dourado do crepúsculo. Na ponte bicentenária, um quilômetro rio acima, a trepidação de um ônibus sobre as grandes treliças de ferro espanta um bando de pássaros, que fogem em formação rente ao espelho d’água.
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O laranja se torna vermelho-escuro e cede lugar às luzes que se acendem na cidade-irmã da banda de lá, lançando sobre a água colunas multicoloridas, um balé vivo de reflexos. Revivo a cena do menino desembarcando neste mesmo cais, décadas atrás, em longa viagem até o coração do Recôncavo, para visitar os avós maternos. As mãos do pai seguravam com força as minhas quando desci a prancha do vapor, estremunhado por horas de sacolejo na grande baía, seguidas pelo deslizar manso nas águas compridas rio acima, entrando pela bacia do Iguape e fazendo escala no cais de Maragogipe, costeando as ruínas barrocas do convento de São Francisco e cruzando, após a última curva navegável, o farol e a pedra da Baleia.
A irrealidade da bruma que então pesava sobre as duas cidades contrapostas, Cachoeira e São Félix, continua guardada, como foto rara, no catálogo da memória. No mesmo ângulo e do mesmo lugar vejo, hoje, os casarões e armazéns da margem direita do rio, grande parte deles em ruínas. Acima, na encosta, as pequenas casas amontoadas como um presépio na parte central do morro mudaram pouco as fachadas, dispostas com harmonia artesanal em torno da grande cruz de cimento. Mas as bordas daquele ajuntamento cresceram descontroladas e se degradaram, assim como as fatalidades do tempo tornaram-me outra pessoa, totalmente diferente da criança de pernas vacilantes que aqui aportou há décadas.
O fato é que segui o caminho da vontade e ela me trouxe até a margem do rio. Tento agora mergulhar nas motivações, para entendê-las, uma a uma, em busca de sentido e direção.
O bafo que me eriça o cangote é soprado por forças que não podem ser desafiadas em campo aberto, sob luz solar e com regras razoáveis. Sequer me encorajo a lhes pronunciar o nome, no devaneio de aplacá-las. A real é que o divã de análise me impunha, a alto preço, uma sobrecarga de regras e liturgias àquelas que eu ansiava por me livrar, fazendo-me prisioneiro de consciência ante duplas grades mentais. Não houve como desatar, cortar ao meio ou ignorar o nó que separava a realidade do distorcido mundo interior que eu protegia a alto preço, um mundo de cruezas de um lado e desvarios no outro, mundo que eu tentava equilibrar como as duas bandas de uma balança viciada.
Recorrer a remédios brochantes e a escapes convencionais era risível e busquei os fundamentos da desordem que, de alguma forma, se mesclara ao meu ser original como uma segunda natureza: partilhava dos meus atos e impulsos, fazia desandar as medidas, surpreendia-me com o ludismo da navegação errante quando mais necessário se fazia o acerto de prumo ou a solidez de um porto. Cerrei os ouvidos aos cantos arriscados das sereias do litoral, mas não me sentia pronto para os conselhos sábios das venerandas yalorixás do altiplano e do vale do Paraguaçu. Em seus terreiros de raízes seculares e árvores frondosas, elas perpetuavam as liturgias e manifestações terrenas das deidades zelosas dos mistérios da natureza, pináculo de uma cultura ancestral de dois continentes e motivação primeira daquela viagem.
Quem sabe, uns dias de imersão nos ensinamentos iniciáticos, na paz e simplicidade reveladora de uma camarinha, e a aceitação de uma missão espiritual me dariam jeito e sentido, me fariam sentir o peso do chão contra os pés… Mas eu tinha a alma saltimbanca e um ritual purificador de cunho próprio precisava, antes de tudo, ser levado a cabo. Soava estranho, sim, ter de me curar antes para procurar o remédio depois, mas procedia assim a minha natureza escorpiana.
O poço sem fundo de tais reminiscências transborda e me alaga o pensamento, enquanto acompanho a chegada das canoas, que retiram da paisagem fluvial os últimos transeuntes. Pago a conta, ergo-me e zanzeio a passos arrastados até a praça consagrada aos heróis da Independência, aspirando os odores lodosos do rio em vazante, replicando o fundo exposto dos meus humores. Sentira por toda a tarde o desligamento, um a um, dos controles que me trouxeram a esta cidade de dois lados, em regressão penitencial, na busca de saídas ante o abismo que se alargava em meu âmago, para além da própria largura do Paraguaçu.” (Para ser lido tendo como fundo musical “Cachoeira”, do bardo Mateus Aleluia).
Artigo publicado originalmente em http://wagau.blogspot.com.br/2013/07/duas-cidades-e-um-rio-no-meio.html