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O 25 de Abril da nossa perplexidade. Por Boaventura de Sousa Santos

8 - 11 minutos de leituraModo Leitura
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Há quarenta anos escrevo um artigo sobre cada década da revolução do 25 de abril de 1974. A análise das prioridades interpretativas ou prospectivas mostra que ao longo dos anos me fui enfrentando com dois ressentimentos,

um principal e outro secundário, aos quais fui respondendo, sem ressentimento, mas com argumentos e justificação de opções políticas. Refiro-me ao ressentimento da oportunidade perdida e ao ressentimento do passado perdido. No decurso deste longo período, os dois ressentimentos mudaram as suas posições de relevo relativo. O primeiro ressentimento dominou nas primeiras três décadas e o segundo tem vindo a dominar desde então.

Há dois tipos de ressentimento: o histórico-ideológico e o interpessoal-comunitário. Em ambos os casos, trata-se de emoções ou sentimentos que dramatizam danos considerados injustos pela via ético-moral e, portanto, não política. Implicam sempre a existência e celebração das vítimas. Os dois tipos de ressentimento demonizam o agressor, e, no caso do ressentimento histórico-ideológico, o arrependimento ou reparação é muito mais difícil senão mesmo impossível. Nos ressentimentos em que abunda a sociedade contemporânea encontramos componentes dos dois tipos de ressentimento, mas é sempre possível detectar nuances e prevalências. Neste texto trato exclusivamente do ressentimento histórico-ideológico.

O ressentimento da oportunidade perdida – A revolução do 25 de Abril de 1974 desencadeou duas energias políticas extraordinárias porque combinadas: democracia e socialismo. Depois de 48 anos de ditadura, a democracia estava no cerne da revolução. Ocorria uns anos depois do movimento estudantil de 1968, que teve em Coimbra um precursor em 1962, e um ano depois do golpe de Pinochet contra o regime socialista democrático pretendido por Salvador Allende. Sem dúvida que no campo socialista surgiram posições extremistas que não queriam a democracia representativa por a considerarem burguesa; dividiam-se entre os adeptos do sistema soviético, albanês ou chinês. Verdadeiramente hegemônica era a ideia do socialismo democrático. Foi consagrado na Constituição de 1976 e os próprios partidos que hoje são de direita se consideravam defensores do socialismo. A ideia do socialismo democrático estava inscrita nas aspirações populares, mesmo que não se soubesse bem em que consistia. Recordo-me de que em 1980 – nessa altura eu fazia a ligação entre a Universidade de Coimbra e o Movimento dos Capitães (MFA) de Coimbra, comandado pelo tenente-general Franco Charais – o Reitor me pediu para visitar a Iugoslávia a fim de conhecer o sistema socialista autogestionário, que era antissoviético, mas sobre o qual se sabia pouco e escrever um relatório. Passei um mês nesse país e também na Albânia (para contrastar), mas quando voltei o interesse pelo socialismo havia murchado.

Em 1985, escrevia eu: “a sociedade portuguesa vive hoje uma atmosfera de reservada expectativa. Os últimos dez anos foram o desenrolar de um processo de transformação social muito complexo cujas implicações não são ainda plenamente visíveis. Teme-se e, ao mesmo tempo, deseja-se que o futuro seja diferente dos muitos passados recentes de que resultou o nosso incerto presente. Tudo ou quase tudo começou com o 25 de Abril de 1974, sem dúvida o acontecimento mais marcante da história contemporânea do nosso país. Conhecer em profundidade o que então (e depois) se passou e porque se passou constitui a chave para compreender muitas das nossas interrogações de hoje e é, portanto, um desafio para os cientistas sociais e, em geral, para todos nós, cidadãos comprometidos com o devir histórico do nosso país[…] lançar um debate científico, com o recuo histórico nesse momento [1985] já possível, sobre esta importante data da nossa contemporaneidade, um processo social rico e complexo que percorreu (profundamente? superficialmente?) a realidade portuguesa com modelos de desenvolvimento e planos políticos, com projetos de ação e programas de futuro, que foram outras tantas linhas com que se cozeram as rupturas e as continuidades entre a sociedade emergente e a sociedade antiga que lhe foi resistindo com a força feita dos anos”. Não se problematizava a democracia, que se tinha como um bem incondicional e irreversivelmente adquirido, mas o socialismo já era algo longínquo, substituído pela sua versão capitalista – passe a contradição – da social-democracia. Os temas principais de reflexão eram “a cultura e os novos modos de vida; as transformações no direito e na administração da justiça; a luta pelo controle da produção; os movimentos populares pela melhoria das condições de vida”.

Quase trinta anos depois, em plena crise financeira-existencial que a intervenção da Troika (União Europeia-Banco Central Europeu-Fundo Monetário Internacional) significava, eu escrevia em 25 de Abril de 2011: “vivemos o mais sombrio 25 de Abril depois daquele que há 37 anos, qual milagre profano, nos interpelou: levantai-vos e caminhai. Assim fizemos aos trancos e barrancos, vencendo desafios, caindo em armadilhas, até chegarmos a estes dias em que um Deus estranho, porque trinitário mas sem graça, nos ordena: ajoelhai-vos e rastejai. É também um imperativo estranho, ainda que não inédito na nossa história, porque nos oferece a salvação a troco de perdermos a alma.

Estamos a assistir ao desenvolvimento do subdesenvolvimento do nosso país e aparentemente assistimos passivamente. Como se o país fosse um lugar distante, habitado por gente que conhecemos mal, por quem não temos especial estima e que certamente merece o fardo que lhe cabe carregar. Ouvindo ou lendo alguns comentaristas dá a impressão de que são alemães a falar do nosso país. Dissecam a realidade nacional como se fossem médicos legistas, esquartejando o cadáver, como se não fossem parte dele. Outros, super-ricos, a quem o dinheiro dá direito à sabedoria encartada, declaram-se revoltados com a pobreza e as pensões de miséria, como se a pobreza fosse um pecado de que a sua riqueza está inocente. E quase todos flagelam o país, como se as causas da nossa crise financeira não fossem sistêmicas e, portanto, em parte, estranhas à nossa ação, por mais desastrada que tenha sido. A autoflagelação é a má consciência da passividade e não é fácil superá-la num contexto em que a passividade, quando não é querida, é imposta. A chegada a Lisboa da trindade UE-BCE-FMI constitui simbolicamente um ativismo de alta intensidade que contrasta com a nossa incapacidade de agir. Estamos a ser agidos. Nosso é apenas o nome em nome do qual outros agem para o bem que só é nosso se for também deles. Para agirmos temos de desviar os olhos desta paisagem e caminhar no escuro por alguns momentos até chegarmos às suas traseiras para ver os andaimes que a sustentam, observar a azáfama que por lá vai e identificar os lanços vazios à espera da nossa ação. Não precisamos de capitães, mas precisamos da lucidez e da coragem que alguns deles tiveram, há 37 anos, para agir sem temer as reações dos mercados ou as notas das agências de rating”.

Este texto era parte de um livro, Portugal: ensaio contra a autoflagelação (Almedina 2012), que, apesar de analítico, representava o fim da ideia (e do ressentimento) da oportunidade perdida. A partir daí dominaria outro ressentimento.

O ressentimento do passado perdido – A última década tem sido caracterizada globalmente pelo crescimento da extrema direita enquanto expressão politicamente organizada. Em Portugal, a sua organização foi mais tardia e chegamos a atribuir isso à força da revolução de 1974. Mas as eleições de Março passado mostraram que Portugal, não só não estava imune a essa onda, como a cavalgava com mais ousadia que outros países europeus. Há pontos de convergência tanto nas causas deste fenômeno global como nas formas que assume. As manifestações mais comuns da extrema direita são: nacionalismo xenófobo e anti-imigrante; anti-sistema, que engloba mais do que o sistema político e abarca as relações sociais; racismo e sexismo; a ideia de que todo o uso do poder é abuso de poder, excepto quando se trata das forças de repressão e de segurança, onde todo o abuso de poder é uso legítimo de poder; uso instrumental da democracia com a subversão da separação de poderes e a banalização progressiva das violações dos procedimentos democráticos liberais; naturalização das desigualdades sociais; Estado de proteção social mínimo ou só para “nós” e Estado repressivo forte e só para “eles”.

No caso português a extrema direita assume a forma de ressentimento de dois passados perdidos: o colonialismo, como expressão de grandeza e de civilização, e a ditadura de Salazar como tempo de ordem e de expectativas à medida das limitadas possibilidades do país. Como se vê, são dois passados assentes em duas ideias contraditórias da identidade do país. Uma, invocando grandiosidade desafiante, ousadia desproporcional às possibilidades reais e, por isso, bem-sucedida; outra, invocando mediania, humildade, contenção, argúcia no manejo das limitações e, por isso, bem-sucedida. É próprio deste tipo de ressentimentos que os passados, quaisquer que tenham sido, foram melhores que o presente. As contradições só se notam quando se sai do universo do ressentimento.

A revolução do 25 de Abril implicou uma ruptura profunda com os dois passados. A ruptura com o passado colonial foi irreversível porque, em boa medida, não dependeu dos portugueses e sim dos movimentos de libertação anti-colonial. À revelia do que sustenta o ressentimento colonialista, as relações com o mundo ex-colonial continuaram e diversificaram-se, mas obviamente expurgadas da violência colonial e orientadas para benefícios recíprocos e multilateralmente estabelecidos. Por sua vez, a ruptura com o passado ditatorial também se pretendeu irreversível, até porque o regime fascista tinha depositado o seu futuro na manutenção das colônias. Mas a irreversibilidade da democracia sempre foi menos certa que a do fim do colonialismo, não só porque dependeu apenas dos portugueses, como também porque cedo cortou o cordão umbilical com o socialismo que a sustentou no início. A questão da irreversibilidade toma a democracia liberal como uma entidade fixa e inequívoca, o que é desmentido pela realidade todos os dias. O que vale uma concha de ostra sem uma ostra dentro? O que será a democracia se os cidadãos e as cidadãs votarem majoritariamente em partidos de extrema direita que usam a democracia para chegar ao poder, mas, uma vez no poder, não o usam nem aceitam perdê-lo democraticamente?

Tanto para o caso português como para o fenômeno global, tem-se dito que a nova extrema direita, ao contrário da do século passado, não recorre ao fascismo de partido único. No plano formal assim parece ser, mas a realidade é bem mais complexa. O neoliberalismo do pós-queda do Muro de Berlim constitui um novo estágio de luta de classes que visa eliminar a relativa distribuição de riqueza que as lutas sociais das classes trabalhadoras conseguiram a muito custo ao longo do século passado. Tal como os direitos humanos, a democracia tem vindo a ser celebrada ao mesmo tempo que é esvaziada de conteúdo material na vida concreta das famílias. Nas atuais condições, o custo político de eliminar as políticas sociais em democracia é muito mais baixo do que o fazer em ditadura. Mas ninguém pode prever até quando.

É que o outro pilar do neoliberalismo foi globalizar o poder político-financeiro real (centrado num círculo pequeno de países dominantes), mantendo os conflitos políticos democráticos a nível nacional. Esta descoincidência, combinada com o controle da opinião midiatizada, políticas sofisticadas de vigilância e mudanças tecnológicas na organização do trabalho, desarmou quase por completo as lutas sociais por uma sociedade mais justa. Se não for possível reconstruir essas lutas, a própria democracia será desarmada sem ser eliminada. O Presidente Julius Nyerere da Tanzânia disse certa vez que os EUA também eram um regime de partido único, só que com a especificidade de serem dois. A democracia, mesmo que esvaziada, é sempre melhor que a ditadura, mas só para aqueles que podem se beneficiar dela. E são cada vez menos. As máscaras do ressentimento colonialista e fascista escondem a cara de gente simples e sem voz que tem a sensação de ter perdido o pouco que tinha e nenhuma esperança de o reaver.

Neste ano, mais do que nos anteriores, “o que faz falta é animar a malta”, para lembrar José Afonso. E para o fazer são necessárias políticas e governos que ataquem o ressentimento sem ressentimento.

Artigo publicado no Brasil 247

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