Aldeia Nagô
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Fosse eu um médico cubano… por Marcelo Miterhoff

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Viria para o Brasil, independentemente de ser contra ou a favor do regime castrista. Fosse um ardoroso e idealista defensor da revolução –daqueles cujos pais ensinaram que antes dela, entre outras conquistas, um mulato estava condenado a um trabalho subalterno–, viria para propagar um de seus grandes feitos: mostrar que a atenção primária à saúde é a de maior resolutividade.

Viria para mostrar que as prioridades podem ser diferentes das que frequentemente o Brasil faz. Em Cuba, mesmo com uma renda per capita baixa e uma infraestrutura de saúde precária, a população é bem atendida no que há de mais importante. Não à toa, a expectativa de vida é de quase 80 anos. Com o dobro de renda, a brasileira é 74 anos. O tratamento de câncer pode ser pior que no Brasil. Contudo, não se morre de diarreia por falta de médico perto de casa. É bom um país ter hospitais de gabarito, porém não pode faltar pediatra nos postos de saúde.

Viria ficar uns anos no Brasil, aprender português para ler Saramago e Guimarães Rosa no original. Aproveitaria para assistir a novelas que só passarão em Cuba depois de meu regresso, dando-me a chance de me deleitar com a curiosidade alheia.

Fosse, de outra forma, um tipo mais ordinário, que só quer fazer o seu trabalho, ter um bom salário e poder escolher o que fazer da vida, também viria para o Brasil.

Vida de médico em Cuba não é fácil. Outro dia, sem dinheiro e com trabalho árduo, uma colega disse que nem podia reclamar tanto, pois, apesar de ela ser médica, ao menos tem a sorte de seu marido ser guia turístico. Fiquei me achando um bobo, mas não vituperei contra os guias. Apenas disse que é triste viver num país em que as melhores profissões são as que ganham gorjetas.

Viria porque faz tempo que penso nessa possibilidade. Há alguns anos uma galega, médica brasileira, fez-me juras, daquelas que se faz para um amor intenso e marcado para acabar em algumas semanas de férias, e disse que desejava que o Brasil contratasse médicos cubanos para onde faltam médicos no país. “Poderíamos nos ver sempre, querido.” Meio irritado, perguntei se esses lugares não são longe de sua cidade, o Rio de Janeiro. “Em geral sim, amor. Mas faltam médicos em muitos lugares do Brasil, inclusive nas periferias das metrópoles.”

Disseram-me que no Brasil há gente preocupada com o salário que sobrará para mim, após os impostos cubanos. Agradeço e torço para que isso faça o governo brasileiro negociar com os irmãos Castro para que eu receba ao menos metade dos R$ 10 mil que o Brasil pagará de salário. De qualquer maneira, ganharei bem melhor do que em Cuba e quero ganhar mais. Só que sem ter ilusões.

Esse é um negócio de ocasião, um encontro de duas situações adversas: brasileiros que vivem em regiões onde é difícil fixar médicos e médicos cubanos que querem de algum jeito sair de uma ditadura.

Parece que também estão preocupados que eu tenha que voltar para Cuba contra minha vontade após os três anos de contrato. Dei risada ao saber disso. Sem ofensas, é engraçado alguém estar preocupado com a possibilidade de eu ser obrigado a voltar para uma ditadura antes mesmo de eu ter conseguido sair dela.

Sei que os Castro têm amigos no governo brasileiro. Do contrário, nem haveria o programa. Mas já pensou se alguém tivesse garantido que os cubanos poderão ficar no Brasil? Ninguém saía de Cuba.

Em três anos, muita coisa acontece. Posso me casar com uma brasileira ou ter filho no país. Asilo político não é coisa que se decida de antemão.

Também posso fazer a prova de revalidação do diploma para poder clinicar sem restrição no Brasil. Sei que essas provas são feitas para quase ninguém passar. No entanto, em Cuba, como diz uma expressão popular, médico tem que “se virar nas dez” (posições do beisebol). Depois de aprender o português, estudo e passo.

Não sou um médico cubano, e sim um brasileiro privilegiado. Quero dar boas-vindas e desde já agradecer àqueles que, por um ou outro motivo, decidiram vir para o Brasil ajudar a combater um problema grave do meu país.

Dedico a coluna a Elisa, minha mulher, que é médica e favorável ao Mais Médicos.

marcelo.miterhof@gmail.com

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