Com 35 anos de carreira no cinema, Sol Moraes recebe grande homenagem da 7ª Mostra Lugar de Mulher é no Cinema
“Pois a luta de ontem reflete no que somos hoje; a luta de hoje escreverá a história do amanhã”, define Sol Moraes, sobre o espaço da mulher no audiovisual brasileiro. Com uma vasta experiência na produção e direção cinematográfica, Sol trabalhou em produções como Tieta (1989), They don’t care about us (1996) – clipe de Michael Jackson, gravado na Bahia -, Sub Urbano (2003), é proprietária da Araçá Filmes, há 28 anos.
A produtora tem mais de 40 obras entre curtas, longas de produções próprias e em co-produção com empresas nacionais e internacionais. Um exemplo de projeto mundial feito pela realizadora aconteceu em 2009. O Encontro Internacional da Diversidade Cultural foi responsável por reunir organizações de mais de 40 países. Em breve, Sol tem novas obras para serem distribuídas, sendo elas: Nina, Longe do Paraíso e A Pele Morta. Formada em Cinema pela Universidade Federal da Bahia, e com passagem na chefia de gabinete da Prefeitura Municipal de Lençóis, a artista reflete sobre as transformações da área, olhando para elas sobre o aspecto positivo e negativo.
Se por um lado, Moraes vê uma noção maior da classe sobre seus direitos e deveres, a cineasta e produtora enxerga uma perda de espaço dos trabalhadores do campo para elementos como a IA. Ainda assim, projetos como a Mostra Lugar de Mulher é no Cinema são vistos como um respiro dentro de uma realidade de luta dentro do cinema. Ainda assim, Sol explica que a necessidade de um festival que foque no olhar feminino revela uma necessidade urgente da sociedade de avançar, no que se refere à abrir espaço para todes, sem limites de gênero, classe, raça etc. “Essa mostra é um projeto que vi nascer, em 2017, 12 anos após I Festival CineMulher em 2005, da Lola Laborda. Um hiato de 12 anos para nascer outra tentativa de ter uma mostra com o recorte focado na MULHER. Isso já diz muito”, salienta.
Neste clima de reflexão, profundidade e maturidade sobre o que é a indústria cinematográfica no Brasil e sua intensa e dedicada trajetória de trabalho, que Sol Moraes conversou com a equipe da Mostra Lugar de Mulher é no Cinema. Confira a entrevista completa.
Entrevista
Enoe Lopes Pontes – Quando e como foi a sua primeira experiência com o cinema? (Podendo essa resposta ser sobre você como espectadora e como profissional).
Sol Moraes – A minha primeira experiência no cinema foi mágica. Eu tinha 08 anos e estava passando uma procissão na rua, a procissão do Senhor do Passos em Lençóis, e na multidão estava José Wilker, que estava fazendo o maior sucesso na novela da Globo e eu fiquei assustada, como ele estava a li na minha cidade fazendo o filme Diamante Bruto do Orlando Senna e também na TV a noite, continuando em Lençóis….(risos). Naquele dia criou-se uma semente da magia do cinema na minha cabeça e coração.
ELP – Em seus longos anos de carreira, como você descreveria as transformações do audiovisual brasileiro, seja em aspectos positivos e/ou negativos?
SM – Como tudo na vida o cinema também passou por suas transformações. Pensando na minha caminhada, as transformações começaram pela bitola; o set de começou em 35mm uma câmara imensa e com uma equipe reduzida. Hoje a câmara é minúscula e a equipe triplicou. O que nos mostra a transformação do entendimento dos departamentos como uma engenharia da produção, onde as profissões se estabelecem, se consolidam e criam novos formatos. Mesmo que a AI chegue desempregando muita gente, mudando a forma de desenhar um projeto, de apreender imagens, de empregar pessoas, porém a narrativa e a estética serão sempre mais brilhantes com a mão humana. A Legislação mudou pelo avesso, hoje temos a Lei que nós lutamos por ela, a 12.485/2009 que mudou a forma de fazer cinema no Brasil, passando a ser AUDIOVISUAL, onde os estados se reorganizaram, empresas e técnicos surgiram. Os aspectos positivos é que as pessoas tendem a conhecer mais os seus direitos, seu lugar de fala e ter e um leque maior de escolhas e principalmente cada vez mais pessoas tem acesso ao fazer audiovisual. Os aspectos negativos é que seguimos com a concentração de verbas, mesmo fora do eixo. A Lei do Audiovisual segue no Sudeste, e as empresas fora do eixo que se dizem grandes, não acessam outros mecanismos a não ser o FSA.
ELP – Como você encara o espaço dado para a mulher dentro do cinema brasileiro antes e agora?
SM – Pois é, ninguém nos dá nada e nem eu quero nada dado. Mas o espaço conquistado pelas mulheres para min é muito significante. Sempre existimos, mas agora podemos fazer reparação e muitas vezes jogar luz e confetes ao que já está posto. Eu tenho 35 anos de cinema, nunca vivi ocupando as páginas dos jornais, pois nunca paguei para isso e nunca usei nenhum artifício para. Mas acho que sim escrevi a minha história do meu jeito. Talvez nunca esteja num livro, se eu não a escrever, talvez nunca seja capa de jornal, mas tenho a consciência que construir alicerces para muitas gerações e que mulheres como Edyala, Sylvia Abreu, Conceição Senna, Helena Ignês, e tantas outras, também construíram caminhos para a minha geração. É sempre um passar de bastão, alguns com muita luz e outros na penumbra.
ELP – Agora, falando sobre a parte mais criativa, digamos assim, da sua carreira, como funciona o seu processo de criação na função de cineasta?
SM – Só corrigindo, toda parte é criativa, desde o ato de pensar uma história, a montar um trilho no set, a construir uma luz e um cenário, a construção de uma planilha de excel para o pagamento da equipe de um set. Eu me formei em cinema pela UFBA, depois de mais de 20 anos no set de cinema, e fui para academia exatamente protestar que produtor não é para carregar piano, é para criar possibilidades para um projeto exitoso. Então, desde a ideia a escritura de um roteiro, eu procuro está presente como produtora de todo o processo, pois para mim o cinema que vai para tela depende da sua pesquisa, do seu desenvolvimento, da equipe que você escolhe do processo que você impacta no set, não só dentro das filmagens, mas no seu entorno, e como você quer que essa obra chegue até às pessoas.
ELP – Sobre a Araçá Filmes, que já conta com quase 30 anos, como foi a criação da produtora, quais foram suas motivações para realizar este intento, qual diagnóstico você faria, pensando nos planos que você tinha, lá em 1996, e como a Araçá é agora?
SM – Eita, A Araçá Azul nasceu de um momento que eu estava mudando radicalmente de vida, me jogando de cabeça para o amor e para os experimentos da vida. Foi pensada pelo meu ex-sócio e na época parceiro, que me disse que eu já havia crescido demais para continuar como CLT. Devo esse salto a ele, Tito Gardel. No segundo momento eu transformei a Araçá Filmes em produtora, e comecei a me colocar como empresária no mercado. Mas vi que não era o que eu queria, ser mais uma empresa sem números de filmes. É quando eu encontro meu segundo parceiro que, como eu, era apaixonado por histórias, gente, espaços, sonhos, e começamos a escolher que filmes queríamos fazer, os cursos que queríamos dar, os filmes que queríamos exibir, desde os filmes comerciais, para pagar as contas aos filmes não comerciais para sonharmos, provocar debates em nosso cineclube e trazer reflexões para novos momentos.
ELP – E hoje? Como as coisas estão?
SM – Hoje, viúva e com uma nova escrita para minha vida, a Araçá Azul Filmes, é uma junção do ontem e do hoje, que tem interesse em ser co-produtora, sem ser a detentora da execução, mas sim da criação de impacto sociocultural/ambiental. Quero pegar projetos que tenham impactos que pense no home e no planeta, através das suas histórias. Numa sociedade mais justa, participativa e democrática.
ELP – Quando você fez os cursos da UFBA, você já contava com uma vasta experiência profissional, como foi esta relação que você estabeleceu/estabeleceu com a academia?
SM – Bom eu e a academia só passamos a nos entender através da transversalidade revolucionária do Bacharelando Interdisciplinar de Artes da UFBa em 2009. Eu já havia passado pela FACOM em 1982, depois pela FTC em 2003, mas só me encantei pela academia em 2009, quando foi aberto o BI, e ingressamos ainda por vestibular da UFBa. A Grande área que nos é proposto pelo curso antes da concentração é uma revolução. Na verdade, todo universitário deveria passar pela grande área, é ali que nos encontramos, experimentamos e percebemos de fato o que queremos da vida universitária. Foi ali, na grande área, que eu fiz introdução a Economia, Sociologia, Psicologia, Direito, Administração, Contabilidade, eu VAGUEI pelas matérias que eu achava que tinha a ver com a Engenharia da Produção cinematográfica. E na concentração eu mergulhei em todo o processo da evolução do cinema. E mais tarde, já na FTC me deparei com o livro “CINEMA: Sonho e Lucidez” do Fernando Coni Campos, um cineasta que me fez olhar para a construção técnica aliada a magia, o empírico e o acadêmico, a instrução e a intuição. E foi quando eu fiz as pazes com a academia e entendi que quanto mais conhecemos uma estrutura, mais podemos transformá-la.
ELP – Dentro de seus projetos, você acredita que existe algum destaque, que foi uma virada para sua carreira?
SM – Vários. Desde a Fábrica de Imagens, que fomos as primeiras pessoas a trazer formação para as novas gerações, na Bahia. Na época trouxemos o João Moreira Salles, a Elisa Tolomelli, o Walter Carvalho. O curta Lotação, nosso primeiro curta que formou várias pessoas, e nos arriscamos sozinhos filmando em 16mm…
O Cega Seca, que foi nosso primeiro curta com verba, dialogando com laboratórios. E filmamos em 35mm. O Anjo Daltônico que filmamos pela primeira vez em DIGITAL. Os Estranhos, nosso primeiro longa, DIGITAL, que lança dos Jovens no mundo cinematográfico dos Adultos, Paulo Alcântara e Carla Guimarães. Jardim das Folhas Sagradas, de Pola Ribeiro, minha primeira assinatura como Produtora Executiva e voltando para o 35mm. Capitães da Areia que faço minha primeira coprodução, Rio;Bahia. Na verdade, cada projeto é uma virada na nossa forma de pensar cinema, pois nosso crescimento está nessas viradas.
ELP – Mas, tem algum que se destaca de alguma maneira?
SM – Talvez, em mim o que me foi uma virada na minha carreira cinematográfica, foi fazer o Tieta. Pois eu trabalhava há 6 anos na Truque Cinema e Vídeo, que foi a minha base nesse mundo, mas com CLT, sem me experimentar como produtora.
ELP – Uma pergunta que talvez seja clássica (risos), como foi a experiência de sair de um trabalho como Tieta para ser a produtora local do clipe do Michael Jackson? (Eu tinha que perguntar, risos).
SM – (risos) Pois é, era algo que não havia colocado no meu currículo, por achar que um clipe era algo menor (risos). Mas parece que impacta (risos). Produzir o clipe “They Don’t Care About Us” dirigido pelo Spik Lee, na época, era mais para ganhar bem e continuar junto a equipe do Tieta, que foi uma equipe que me deu amigos irmãos para vida. Tanto é que nem uma foto eu fiz com o Michael Jackson e nem com o Spik Lee, só depois que fiz o curso de cinema que vim entender a dimensão do que foi está num set comandado pelo Spik Lee, hoje teria feito fotos e colocado no meu stories (risos). Mas claro que foi importante trabalhar com uma equipe internacional e brasileira, com um monstro do cinema e outro da música. Me faltou esperteza em utilizar isso para meu currículo.
ELP – Agora, com uma trajetória tão intensa e importante para o audiovisual brasileiro, quais são os desafios que você ainda deseja ultrapassar? Tem ainda?
SM – Os desafios, ironicamente não mudam, são os mesmos de todas as gerações. A invisibilidade do nosso cinema, a falta de políticas para que nossos filmes cheguem na ponta.
E para isso tenho dois projetos que criei, faz uns 15 anos, e que só agora começam a nascer.
1 – A Engenharia da Produção, que fala da importância do conhecimento e entendimento da importância da produção no cinema como mola propulsora para a visibilidade dos nossos filmes.
2 – Os Filmes que eu não vi, que é um projeto para revisitar filmes não vistos, que acaba de ser contemplado pela Água Doce, da minha sobrinha Amanda e que é uma das sobrinhas que deverá levar meu legado para frente.
ELP – Sobre a Mostra Lugar de Cinema, como você enxerga o evento e a escolha do festival de homenagear uma mulher importante para o cinema nacional?
SM – Olha, a mostra tem um lugar muito especial no meu coração, pois foi na pandemia, quando Lili, Hilda e Morgana, me convidaram para uma Live. Eu estava em casa só, sem poder ver ninguém, e pensando como seria a minha vida pós pandemia, e uma janela virtual me apresentou para o mundo novamente, a janela da Mostra Lugar de Mulher é no Cinema. Foi lindo, eu havia cortado os cabelos, e choveu elogios que massageiam o meu ego feminino, me fez sentir viva e me reconectou com as pessoas e muita gente começou a me ligar para outras lives. Obrigada a Mostra. Essa mostra é um projeto que vi nascer, em 2017, 12 anos após “I Festival CineMulher” em 2005, da Lola Laborda. Um hiato de 12 anos para nascer outra tentativa de ter uma mostra com o recorte focado na mulher. Isso já diz muito. Cito este festival para que nós mulheres nunca apaguemos outras inciativas, mas sim fortalecemos, registramos e assim nos impulsionamos. Acho que a Mostra Lugar de Mulher é no Cinema, além de lançar luz sobre as mulheres que estão na lida do dia a dia, e hoje com um recorte muito mais amplo como mulheres indígenas, não binárias, pretas, brancas, sem cor, sexagenárias, ele ajuda a faz uma retrospectiva da história de muitas mulheres e a sua invisibilidade.
ELP 1 Para finalizar, me conta qual a sensação de você ser homenageada pela Mostra? Qual a sensação?
SM – Nossa, estou ficando velha (risos). Brincadeiras à parte… Primeiro é uma alegria ser reconhecida no seu ofício, nos dá uma sensação de que de alguma forma plantamos algo que valeu a pena. Sei que me trará uma visibilidade que eu não provoco no meu dia a dia, mas entendo que é de suma importância para nos posicionarmos para o mundo, estético/histórico, como EU EXISTO. Mas a sensação melhor é que mulheres como eu, que estão na luta para a construção para a visibilidade das mulheres, com carinho e generosidade, ascenderam um holofote sobre min. Isso é uma sensação de afago, de acolhimento, e que lógico também afaga o nosso ego. Então, toda a minha gratidão a mostra por esse reconhecimento, nas pessoas de Tulani, Nina, Day e Hilda. Tudo na vida é um efeito cascata, a passada de bastão existe para que possamos seguir nos reinventando, nos acolhendo, nos experimentando, e principalmente, nos enxergando, dando as mãos e tornando visíveis. Tem uma música, que é uma letra simples, mas que uma frase nessa música foi gatilho para a vida: “EU NÃO POSSO MUDAR O MUNDO, MAS EU BALANÇO, EU BALANÇO O MUNDO”. É de uma compositora, atriz. Potiguar, Juliana Linhares, que se radicou no Rio de Janeiro. Hoje em dia eu não sinto uma autoria sem citar o autor, principalmente a mulher, (risos)/ É uma frase que me faz pensar que só mudamos a partir de nós, das nossas iniciativas, do nosso primeiro passo. E é balançando que provocamos transformações.