Contagiado pelas vibrações positivas da primavera, que já bate à porta, resolvi atravessar para a ilha e lá encontrei um bocado de novidades.
É fato notório que o laborioso e lúdico povo insular está esperançoso de que role, nesta temporada, uma alta estação “vintage”, daquelas que são lembradas por anos a fio. Quer ver alguns exemplos?
Na aprazível vila da Coroa, o papagaio do Jonas não cabe em si de contentamento com a boa-nova que recebeu por seu celular privativo. Atendeu a uma chamada da produtora da globo que, em uma tarde de peripécias no bar do Gonzaguinha, encantou-se com o louro que dançou, cantou e aprontou. A moça toda-poderosa garantiu que tornará a ave astro da TV, se o relutante Jonas a liberar para viagem. O céu dos papagaios não tem limites…
?Falar em Gonzaguinha, ele acaba de finalizar as reformas para a alta estação: a varanda do seu conceituado bar-village assemelha-se, cada vez mais, ao convés de um navio de cruzeiro, ancorado em parte nobre da baía. Gonzaga está disposto a mais uma vez amealhar o troféu de visual mais arrebatador da ilha, oferecendo, de lambuja, uma bem escolhida e eclética trilha musical, em volume que permite à clientela conversar sem gritar, coisa rara na ilha. Mais: o abará embrechado do Jonas continua imbatível, e o falastrão Zé Boquinha concluiu o duro aprendizado, tornando-se o mais novo pescador de siri catado no estirão de praias que vai de Mar Grande a Conceição.
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Imerso até o pescoço nas águas mornas da Penha, o juiz aposentado dr. Tudinho anunciou estar quase concluída sua obra-prima artesanal, uma rede de pesca prodigiosa, cujas malhas complacentes deixam passar tubarões, tartarugas gigantes e até baleias. O segredo é a eficácia para contrair-se ante bagrinhos, tainhas e petitingas, aprisionando-os sem dó nem piedade. “Dura lex, sed lex”, proclama o doutor, orgulhoso do seu engenhoso invento, inspirado na retórica e nas ilibadas tradições forenses.
Em Barra do Pote, o afável Guiga está rindo para os coqueiros que sombreiam o seu renomado recanto gastronômico: uma cliente muito especial foi agraciada, semana passada, com o título de “imortal” na Academia de Letras da Bahia, ocupando a cadeira que foi um dia do vate Castro Alves. Isso mesmo, Mãe Stella do Ilê Axé Opô Afonjá, a ilustre yalorixá e escritora, que tem por guia Oxossi, como também é de Oxossi o próprio Guiga e o cronista que escreve estas mal-traçadas. Ela aprecia as moquecas perpetradas pelo talento minimalista de Guiga, que faz uso de peixes, moluscos e crustáceos apanhados ali perto, no mar ou no mangue, e chegam à panela ainda pulando. Guiga nunca esquece a primeira vez em que viu a imortal no estabelecimento: depois de degustar os petiscos ela o chamou, tocou-o de leve no ombro e, com sua peculiar gentileza e sabedoria, pronunciou as palavras mágicas: “Parabéns, Guiga!”
O que mais falta para completar-se, com júbilo, o ciclo de despedidas dos ventos úmidos do inverno e abrir com bons fluidos o portal florescente da primavera? O problema é que os ventos sopram em variadas direções e há, sempre, correntes que sabotam a festa.
De um lado da baía que é berço do Brasil, a falha geológica que divide Salvador em duas cidades continua imponente, encimada pelo paliteiro predial de um lado e pela massiva ocupação espontânea do outro. Apurando a atenção, vê-se que nuvens de energia negativa insistem em pairar sobre a cidade maltratada pelo desamor e inapetência dos gestores e enxovalhada pelos vendilhões e trambiqueiros que a tornaram desigual, engarrafada, mal-humorada, dessemelhante.
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Nuvens soturnas empanam o céu de Salvador |
A saída do ferry-boat, em São Joaquim, presenteia-nos com o visual assombroso da galopante degradação das encostas, que aos poderes cabe preservar como santuários históricos e ambientais. Na ilha, a contraparte desse desmazelo se expressa na tosca fileira de barracos, gambiarras e puxadinhos que, sem qualquer atenção pública, se espraia livremente na beira-mar do lado norte (direção Itaparica) do terminal de Bom Despacho, seguindo o roteiro previsível que favelizou a paradisíaca prainha da banda sul (direção Vera Cruz). Como é que essa gente, que não sabe ou não quer cuidar do próprio quintal, pode garantir a ocupação civilizada e racional do solo nos seus megaprojetos?
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Desleixo com ocupação irregular das encostas desfigura cenário histórico-ambiental de Salvador
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Na ilha, ao lado do terminal de Bom Despacho, favelização na praia prospera livremente |
A travessia expõe o velho confronto entre a parte gosmenta que não descola do otimismo hedonista da baianidade nem da natureza pujante que insiste em rebrotar a cada primavera, mesmo que uns não queiram.
Publicado originalmente em http://www.wagau.blogspot.com.br/#!http://wagau.blogspot.com/2013/09/bye-bye-inverno.html