As fantásticas fábricas de fascistas. Por Moisés Mendes
Especialistas convocados pelos jornalões já estão divagando sobre a capacidade de expansão e de duração do fenômeno do marçalismo. Como fizeram com Bolsonaro, e quase todos erraram. Como fizeram com Milei na Argentina. E também falharam.
Enxergar adiante o que irá acontecer com o fenômeno Pablo Marçal é exercício de adivinhação, é quase charlatanismo. Mas é o que auditório pede hoje, e a ciência rápida também se presta a essas demandas do público.
O problema é que os especialistas não dão conta mais nem do que vai ficando para trás e que poderia ajudar a explicar o surgimento dessas figuras. Como querer ver o futuro se não compreendemos direito como elas chegaram até aqui?
As respostas, no macro, são repetitivas. A guerra híbrida, o trumpismo, as redes, as desilusões com a democracia, o negacionismo, o supremacismo, os movimentos antissistema, o falso moralismo, as igrejas, o militarismo.
No particular, no específico, as tentativas de explicação mais falham do que acertam. Porque a extrema direita se reciclou de um jeito que a ciência não dá conta dessas demandas. Não mais a ciência que explicava fenômenos e conflitos do século passado.
Vamos a exemplos banais. Na Argentina, o extremista mais famoso até o início dos anos 20 era o deputado Alfredo Olmedo, que defendia a construção de um muro na fronteira com a Bolívia.
Depois de Milei, ninguém mais se lembra de Olmedo. O fascismo pós-ditadura era apenas folclórico, num país que desfrutava da pretensão de ter erguido defesas seguras contra extremismos e totalitarismos. E então Milei criou um partido, o Liberdade Avança, em 2021, e dois anos depois se elegeu presidente.
No Equador, Daniel Noboa era um ricaço e ex-deputado obscuro até eleger-se presidente no ano passado. Na Venezuela dos cansados Henrique Capriles e Juan Guaidó, Edmundo González foi buscado em casa para substituir Maria Corina, que até bem pouco tempo era apenas uma Damares, e enfrentar maduro.
Noboa tem 36 anos. González tem 74. Noboa é da geração das redes sociais, González é um analógico que só consegue dizer o que pensa se ler o texto que escreveram para ele num papelzinho.
No Uruguai, outro milionário, Juan Sartori, tentou ser o Bolsonaro deles, na eleição vencida por Lacalle Pou em 2019. Sartori sumiu, e o cara da extrema direita uruguaia continua sendo o general e senador Guido Manini Ríos, que cumpre protocolo como fascista.
No Chile, está fortalecido, depois do fracasso das Constituintes pós-2019, o racista e homófobo José Antonio Kast, que formou um partido há apenas cinco anos e pretende suceder Gabriel Boric.
Kast é fascista exemplar, mas quem se atreve a ver as suas semelhanças com Bolsonaro, Milei, Manini Ríos, Guaidó e González que estejam além da abordagem básica que começa pelo discurso antissistema?
E chegamos então a Pablo Marçal, que acrescenta novos ingredientes aos quadros da extrema direita latino-americana como quadrilheiro ligado à bandidagem dos novos tempos de delinquências virtuais e ao crime organizado.
É fácil, tentador e de novo preguiçoso dizer que Marçal comprova as doenças de uma sociedade alienada, machista, supremacista e negacionista. Sim, é isso. Também é fácil elencar adjetivos depreciativos para identificar essas figuras como como aberrações humanas. Dezenas de adjetivos.
Mas não basta. Repetir que a sociedade está doente, que moralismo e religião se misturam para produzir extremismos, que milicianos e traficantes chegam ao poder com o suporte de guerras de ódio, mentira e difamação, nada disso muda nada.
Se cientistas falarem como padres e pastores, alertando para os demônios da extrema direita, estaremos cada vez mais longe de entender por que existem Bolsonaros, Mileis e Pablos, se eles têm um padrão de conduta, mas nos desafiam em suas particularidades.
Dizer que o barro que produziu Milei é o mesmo que moldou Pablo Marçal é cair na armadilha das explicações bíblicas. Eles são iguais e são muito diferentes. E as ferramentas das prateleiras da ética e da moral são insuficientes para explicá-los e ajudar a enfrentá-los.
No caso brasileiro, o que podemos estar testemunhando é que o bolsonarismo, um fenômeno do ativismo de tios brancos do zap, pode estar cansado de guerra e não sabe dizer o que deseja do próprio Bolsonaro.
Numa comparação singela, as esquerdas decidiram salvar Lula porque naquelas circunstâncias, pós-golpe e pós-encarceramento, não iriam sobreviver sem Lula.
Já a extrema direita pode estar tentando matar Bolsonaro para que tenha sobrevida, com outros nomes e outras perspectivas. A linha de montagem do fascismo não para.
Moisés Mendes é jornalista, autor de “Todos querem ser Mujica” (Editora Diadorim). Foi editor especial e colunista de Zero hora, de Porto Alegre.
Artigo publicado no Brasil 247