Paixão amorosa é tentação irresistível, mesmo ameaçadora por Contardo Calligaris
"Vicky Cristina Barcelona".
O amor-paixão é uma tentação irresistível, é o protótipo da vida intensamente vivida.
"VICKY Cristina
Barcelona", de Woody Allen, estreou no Brasil na semana passada. Com muita
leveza e muito bom humor, o filme me levou a pensar nos percalços da vida amorosa.
A história do verão em Barcelona de Vicky e Cristina é um pequeno tratado do
amor-paixão: os espectadores terão o prazer (ou desprazer) de se reconhecer em
algum lugar do leque de experiências amorosas que o filme apresenta -é um leque
pequeno, mas do qual escapamos pouco. Sem resumir, eis umas notas:
1) Os casais que se amam de paixão, cujos parceiros parecem ser feitos um para
o outro, em regra, acabam tentando se matar -com faca, revólver ou qualquer
outro instrumento (cf. Juan Antonio e Maria Emilia). É porque, se o outro me
completa e vice-versa, o risco é que nenhum de nós sobreviva à nossa união -ao
menos, não como ente separado e distinto. Mas, por mais que seja ameaçadora, a
paixão amorosa é uma tentação irresistível (cf. Cristina, Vicky, Judy) por uma
razão simples: nas narrativas de nossa cultura, ela é o protótipo ideal da
experiência plena, da vida intensamente vivida.
2) Por sorte ou não, o amor-paixão é raro. A maioria de nós vive relações menos
"interessantes" e menos fatais -relações em que a gente se preocupa
em criar os filhos, decorar a casa, ganhar um dinheiro ou jogar golfe (cf.
Vicky e Doug, Judy e Mark). Não seria tão mal, salvo pelo detalhe seguinte: em
geral, nesses casais "normais", ao menos um dos parceiros vive com a
sensação de que sua escolha amorosa é resignada, fruto de um comodismo medroso:
"O outro não é bem o que eu queria; culpa minha, que não tive a coragem de
me arriscar a amar…"
Detalhe: como o amor-paixão é um ideal cultural, não é preciso ter atravessado
a experiência da paixão para idealizá-la (as más línguas diriam, aliás, que é
mais fácil idealizá-la sem tê-la vivido em momento algum).
3) Os que parecem não idealizar o amor-paixão passam o tempo se protegendo
contra ele. Deve ser por isto que a "normalidade" amorosa pode ser
insuportavelmente chata: porque ela exige a construção esforçada de defesas
contra a paixão -argumentos morais e sociais, sempre mais "razoáveis"
do que racionais (cf. Mark, Doug). Num casal, quem critica a doidice da paixão
não parece sábio aos olhos de sua parceira ou de seu parceiro; ao contrário,
ele parece, quase sempre, pequeno e um pouco covarde (cf. Vicky e Doug, Judy e
Mark).
4) A paixão não é uma coisa que a gente possa encontrar saindo pelo mundo como
um turista da vida (cf. Cristina). Pois não basta esbarrar na paixão; ainda é
preciso encará-la quando ela se apresenta.
Pode ser que, um dia, se ela conseguir matar Juan Antonio com um tiro certeiro,
Maria Emilia seja internada ou presa. Pode ser que Juan Antonio seja um sujeito
amoral e, por isso, perigoso. Pode ser que Vicky seja desesperadamente normal,
trocando a chance de amar por uma casa num subúrbio norte-americano (estou
sendo injusto com Vicky: na verdade ela tenta…).
Mas, para mim, a mais "patológica" de todas as personagens do filme é
Cristina. Sua aparente abertura para a vida ("Ela não sabia o que queria,
mas sabia o que não queria", narra a voz em off) é apenas uma versão
"bonita" e literária de sua "insatisfação crônica"
(diagnosticada por Maria Emília, com razão). Nisso, Cristina é muito próxima da
gente: ela quer e consegue brincar com a paixão, mas sem perder a ilusão da
liberdade ou o sonho do que ela poderia encontrar na próxima esquina.
Por isso, sua voracidade é a do turista: tira muitas fotos pelo mundo afora,
mas será que ela se deixa tocar pela vida?
5) Disse que "Vicky Cristina Barcelona" trata dos percalços da vida
amorosa com leveza e bom humor; de fato, saí do cinema sorrindo, e não era o
único. Mas a amiga que me acompanhava comentou: "Adorei, mas é um filme
triste". "Como assim?", estranhei. Ela respondeu, com razão:
"É um filme triste porque os personagens se apaixonam, vivem sentimentos
fortes, mas, no fim, tudo isso não transforma ninguém. Vicky e Cristina vão
embora iguais ao que elas eram no começo, sobretudo Cristina…".
Minha amiga tinha razão. O amor e a paixão não nos fazem necessariamente
felizes, mas são uma festa e uma alegria porque deles podemos esperar ao menos
isto: que eles nos tornem um pouco outros, que eles nos mudem. Agora, nem sempre
funciona…
Publicado originalmente na Folha de São Paulo de 20 de Novembro de 2008