Aldeia Nagô
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Consciência negra é consciência de quê mesmo? (só para fortes) por Wilson Gomes

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Tentem descobrir o que significa “dia da consciência negra” usando uma chamada no Google e depois de me contem. Eu não consegui formar uma ideia clara, tomara que vocês consigam.

A Lei que o instituiu, em 2003, se refere apenas ao calendário escolar; aliás, a lei inteira é sobre a inserção de conteúdos relacionados à “História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional”. Mas depois, eu sei, multiplicaram-se os feriados municipais e as interpretações. Li que “é dedicado à reflexão sobre a inserção do negro na sociedade brasileira” ou que “procura ser uma data para se lembrar da resistência do negro à escravidão”. Muita coisa diferente, mas, afinal, é uma data para todos ou para “os negros”? É para produzir autoconsciência e autoestima ou para produzir consciência e estima social? Tem a ver com a escravidão de africanos no Brasil ou com os afrodescendentes? Não é tudo a mesma coisa.

Não gosto de certa complacência social que circunda a instituição dessas “homenagens” a minorias. Prestam-se “homenagens” a negros, mulheres e nordestinos hoje como se fazia com os órfãos e as viúvas de antanho – um reconhecimento com toda a pinta de concessão a minorias que continuam estorvos sociais, vez que continuam minorias. Pessoalmente, nunca me sinto homenageado em situações em que os meus méritos (se os tenho) não são reconhecidos, mas sou simplesmente enfiado num coletivo que só existe enquanto tal em virtude da má consciência dos outros. Caso contrário teríamos, como querem uns estúpidos, um dia da consciência loira, masculina, hétero ou dos moradores de Higienópolis. Mas a eles ninguém sente que deve nada, porque não são diminuídos ou humilhados como classes de pessoas, portanto não precisam ser “homenageados” para aplacar a má consciência social. “Homenagens” deste tipo, portanto, são sempre muito reveladoras do mapa do rebaixamento do outro. Se uma sociedade acha que os negros precisam de um dia para eles, ai dos negros nesta sociedade.

Se a ideia de consciência negra, por outro lado, é para toda a sociedade, gostaria de saber exatamente o que ela significa. É para que a sociedade brasileira lembre o quanto é/foi negra? Ora, senhores, segundo uma infinidade de indícios, tudo o que a sociedade brasileira deseja é esquecer o mais rapidamente possível seu passado africano. Eu acho que deveria esquecer todo o passado, mas o passado que menos nos interessa é este. O dia 20 de novembro deveria, então, enfiar goela abaixo dos brasileiros que sonham com a sua semelhança com a Europa Ocidental que eles são africanos também? Rá.

O resultado é o que vemos todo dia consciência negra – “o negro” é sempre dito na terceira pessoa, negros são quase sempre apenas os outros, eles que tenham consciência, nós já lhes demos o dia, o que querem mais, nos incluir nesta? E ainda se gera um peculiar “racismo liberal” segundo o qual “os negros” (os outros) têm a obrigação de “se assumir”. O suprassumo do racismo liberal é a expressão “você, como negro…” (mas há também o “você, como mulher…”, “você, como gay…”, “vocês, nordestinos”…) em que o sujeito que fala constroi para mim o lugar que acha que me explica e pede que eu me instale nele e não fique perambulando por aí. Não é autoritário ter um dia da consciência negra para que “os negros”, os outros, tenham uma consciência que eu acho conveniente que tenham? Ainda mais quando é fato que os brasileiros, quando não se consideram brancos, gostam mesmo é de se considerar pardos – vide o IBGE. E aí? Teremos um dia da consciência parda ou querem que os pardos também tenham consciência da sua negritude, ficando apenas os brancos dispensados dessa missão? Sei não…

Por outro lado, acho importante haver um dia em que os brasileiros, todos nós, reflitamos sobre o que significa o seu “passado africano”, independente do fato de qual seja a nossa cor de pele ou textura do cabelo, nos chamemos “de Jesus”, que é nome de preto, ou tenhamos sobrenomes alemães, poloneses, japoneses ou italianos. Se não somos apenas um Estado, mas uma nação, o passado é de todos nós e ele explica grande parte do nosso presente, inclusive aquelas coisas que consideramos natural (porque consideramos, sim, natural, que empregadas domésticas, peões de obras e subempregados tenham traços africanos enquanto engenheiros, milionários e médicos têm feições europeias, quanto mais nórdicas melhor). Neste quadro, faz sentido um dia “do não esquecimento”.

Não temos, enquanto nação, o direito de esquecer que este país escravizou seres humanos por quase quatrocentos anos – poucas nações na história da humanidade podem se gabar de tal proeza em termos de crueldade e desumanidade. Que a maioria dos escravizados eram africanos, cuja descendência hoje somos nós, misturados em vários níveis de combinação, com a descendência dos escravizadores. Não temos direito de esquecer que a escravidão levou à morte (depois de lhes retirar liberdade e vida humana), milhões de escravizados, construindo sobre o seu trabalho e o seu sangue o que este país se tornou. Não temos sequer o direito de esquecer o que o país impingiu de pobreza, discriminação, impossibilidade de acesso e, por fim, preconceito, aos descendentes dos que sobreviveram à escravidão. É isso. Não acho que precisemos de um dia para conscientizar os negros de qualquer coisa, nem para conscientizar os brasileiros, contra a sua vontade, de que eles são negros também. Precisamos é de um dia em que os brasileiros não se permitam esquecer do que fizemos, para nunca mais o repetir nem o perpetuar por meio da discriminação e do preconceito.

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