A Tragédia Síria e a Omni-Guerra. Por Pepe Escobar
Publicado originalmente no Brasil 247
Até recentemente, uma hipótese de trabalho geopolítica séria era a de que o Oeste Asiático e a Ucrânia eram dois vetores do modus operandi padrão do Hegêmona
Uma coalisão de neocons straussianos nos Estados Unidos, sionistas revisionistas linha-dura em Tel Aviv e tons de cinza neonazistas ucranianos vem agora apostando em uma Confrontação Final – com diversas nuances, indo desde expandir o lebensraum a provocar o Apocalipse.
O que lhes barra o caminho são, essencialmente, dois dos principais BRICS: Rússia e Irã.
A China, protegida por seu elevado sonho coletivo de “uma comunidade de futuro compartilhado para a humanidade”, assiste cautelosa, à distância, por saber que, ao final das contas, a verdadeira guerra “existencial” a ser travada pelo Hegêmona é contra ela mesma.
Enquanto isso, a Rússia e o Irã têm que se mobilizar para uma Totalen Krieg. Porque é isso que o inimigo está deslanchando.
Enfraquecer os BRICS e o CITNS
A total desestabilização da Síria, com forte participação da CIA-MI6, vem avançando em tempo real, e é uma jogada cuidadosamente arquitetada para enfraquecer os BRICS e além dele.
Ela avança paralelamente a Pashinyan retirando a Armênia da Organização do Tratado de Segurança Coletiva OTSC – com base em uma promessa dos Estados Unidos de apoiar Yerevan em um possível confronto com Baku; à Índia ser incentivada a escalar a corrida armamentista com o Paquistão e uma ampla e total intimidação do Irã.
Essa, portanto, é uma guerra para desestabilizar o Corredor Internacional de Transporte Norte Sul – CITNS, do qual são membros três dos grandes protagonistas dos BRICS – Rússia, Irã e Índia.
Nas atuais circunstâncias, o CITNS é totalmente imune a riscos geopolíticos. Como um dos principais corredores em construção dos BRICS, ele tem o potencial de se tornar ainda mais eficaz que diversos dos corredores chineses da Iniciativa Cinturão e Rota (ICR) que cruzam o Heartland.
O CITNS seria uma linha vital de importância máxima para grande parte da economia global em caso de confronto direto entre o combo Estados Unidos/ Israel e o Irã – com o possível fechamento do Estreito de Hormuz, levando ao colapso de uma pilha multiquadrilionária de derivativos financeiros, implodindo economicamente o Ocidente Coletivo.
A Turquia de Erdogan, como de costume, joga um jogo duplo. Retoricamente, Ancara se posiciona a favor de uma Palestina soberana e a salvo do genocídio. Na prática, a Turquia apoia e financia um bando sortido de jihadistas do Grande Idlibistão – treinados por neonazistas ucranianos no uso bélico de drones e com armas financiadas por Qatar – que acabaram de avançar e conquistar Alepo, Hama e talvez ainda mais além.
Se esse exército de mercenários fosse composto por verdadeiros seguidores do Islã, eles estariam marchando em defesa da Palestina.
Ao mesmo tempo, o verdadeiro quadro, nos corredores do poder de Teerã, é extremamente sombrio. Há facções que defendem uma aproximação com o Ocidente, o que obviamente teria ramificações para a capacidade do Eixo de Resistência de lutar contra Tel Aviv.
Quanto ao Líbano, a Síria nunca hesitou. A história explica por quê: do ponto de vista de Damasco, o Líbano continua sendo um governorato, de modo que Damasco é responsável pela segurança de Beirute.
E esse é um dos principais motivos de Tel Aviv propelir a atual ofensiva salafi-jihadista na Síria – depois de ter destruído praticamente todos os corredores de comunicação entre a Síria e o Líbano. O que Tel Aviv não conseguiu no terreno – uma vitória sobre o Hezbollah no sul do Líbano – foi substituído por isolar o Hezbollah do Eixo da Resistência.
Quando em dúvida, leiam Xenofonte
As guerras no Oeste Asiático são uma mistura complexa de vetores nacionais, sectários, tribais e religiosos. Em um certo sentido, são guerras eternas, controláveis até certo ponto, mas sempre se repetindo.
A estratégia russa na Síria parecia muito precisa. Já que era impossível normalizar um país totalmente fragmentado, Moscou optou por libertar a Síria que realmente importa – a capital, as principais cidades e a costa do Leste do Mediterrâneo.
O problema é que congelar a guerra em 2020, com implicações diretas para Rússia, Irã e (relutantemente) Turquia, não resolveu o problema dos “rebeldes moderados”. Agora eles estão de volta – com força total, apoiados por um vasto bando de jihadis-de-aluguel, com a retaguarda da inteligência do OTANistão.
Fumaça perto de edifícios residenciais em uma foto tirada por um drone em Aleppo, Síria, 3 de dezembro de 2024 (Foto: REUTERS/Mahmoud Hasano)
Algumas coisas nunca mudam.
2012. Jake Sullivan, então assessor de Hillary Clinton: “A AQ [al-Qaeda*] está do nosso lado na Síria”.
2021. James Jeffrey, enviado especial à Síria no governo Trump (2018-2020): “O HTS [Hayat Tahrir al-Sham*] é um recurso valioso para a estratégia dos Estados Unidos em Idlib”.
Não poderia haver momento mais oportuno para o restabelecimento desse “recurso valioso”. O HTS vem preenchendo um enorme vazio. Muito cuidado quando coisas assim acontecem no Oeste Asiático. A Rússia está totalmente concentrada na Ucrânia. O Hezbollah sofreu pesadas perdas com os bombardeios de Tel Aviv e a matança em série. Teerã está totalmente concentrada em como lidar com o Trump 2.0.
A história sempre nos ensina. A Síria é hoje uma Anábase Oeste Asiática. Xenofonte – soldado e autor – nos conta que, no século IV A.C., uma “expedição” (“anabaasis, em grego antigo) de 10 mil mercenários gregos foi contratada por Ciro, o Jovem, contra seu irmão Ataxerxes II, Rei da Pérsia, da Armênia ao Mar Negro. A expedição falhou miseravelmente e a volta foi dolorosa e infindável.
2,400 anos mais tarde, vemos governos, exércitos e mercenários ainda mergulhados nas Guerras Eternas do Oeste Asiático – e sair delas, agora, é um problema ainda mais insolúvel.
A Síria está agora cansada, dividida e com o SAA tornado complacente com o longo congelamento da guerra em 2020. Tudo isso somado ao odioso cerco da fome deslanchado pela Lei César dos Estados Unidos e à impossibilidade de reconstruir o país com a ajuda de 8 milhões de cidadãos que fugiram da infindável guerra.
Ao longo desses últimos quatro anos, os problemas se acumularam. Houve incontáveis brechas do processo de Astana, e Israel bombardeou a Síria quase que diariamente com total impunidade.
A China manteve-se basicamente imóvel. Pequim simplesmente não investiu na reconstrução da Síria.
As perspectivas são desanimadoras. Até mesmo a Rússia – que de fato é um ícone da Resistência, mesmo que não formalmente parte do Eixo da Resistência do Oeste Asiático – vem enfrentando, há três anos, um árduo trabalho em sua luta na Ucrânia.
Apenas um Eixo da Resistência coeso e consolidado – após se livrar dos incontáveis quintacolunistas infiltrados – teria alguma chance de não ser abatido um a um pelo mesmo inimigo consolidado, vez após outra.
Às vezes parece que os BRICS – em particular a China – não aprenderam coisa alguma com Bandung 1955, e sobre como o Movimento Não-Alinhado (MNA) foi neutralizado. ]
Não é possível vencer uma desapiedada hidra hegemônica com flower power.
* organizações terroristas banidas na Rússia e em muitos outros países.
Tradução de Patricia Zimbres
Pepe Escobar é jornalista e correspondente de várias publicações internacionais