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Preta Gil é a Leila Diniz da minha geração. Por Renata Izaa

3 - 5 minutos de leituraModo Leitura

Alguma coisa me diz que no futuro, talvez daqui a 50 anos, uma compositora, alguém assim meio Rita Lee, há de escrever uma canção para nos dizer que toda mulher é meio Preta Gil

Preta Gil, infelizmente para quem nasceu mulher no Brasil, nos deixou cedo demais. Assim como Leila Diniz. Mas não é sobre partidas precoces que quero falar. É sobre presença.

Preta, assim como Leila, não vestiu camiseta panfletária nem posou com caneca estampada com slogan feminista. Colocou um biquíni, daqueles que a sociedade insiste em dizer que só cabem nas supermodelos, e foi à praia. Foi à praia de biquíni pequeno, gorda e preta. Foi com cicatriz. Foi com bolsa de colostomia. Foi.

Há cinco décadas, Leila também foi. Levou os oito meses de gestação à Ipanema e deixou-se fotografar. Leila foi de biquíni azul-marinho. Foi com a barriga escancarada quando a moral conservadora da época pregava que mães iam à praia com a gravidez escondida por uma bata. Foi.

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Todas nós vimos Preta Gil nos dizer que bonito não é apenas o físico magro ou malhado (que escolha de palavra violenta, geração saúde!), mas o corpo da mulher que decide viver como se sente bem, mesmo diante da pressão social que nos quer trancadas em velhos padrões. Bonito é o corpo que deseja vida, nos disse Preta sem discursar em rede social.

E ela desejou, assim como Leila.

Leila Diniz entrou para a história com foto icônica.
Na célebre entrevista ao “Pasquim”, Leila não se deixou intimidar mesmo diante de perguntas machistas (“vai ter strip tease?”) e racistas (“há alguma diferença sexual do negro para o branco?”) feitas por seis jornalistas, todos homens brancos, claro. Leila se afirmou com coragem e liberdade, colocando-se com uma naturalidade espantosa para o Brasil de 1969. “Na minha caminha, dorme algumas noites, mais nada”; “Eu resolvi ganhar meu dinheirinho, ter meu apartamento, ter o homem que eu quiser, pagar as minhas contas, eu trabalho. E gosto.”

Já Preta escolheu posar nua para a capa e o encarte de seu primeiro álbum, “Pret-à-Porter, lançado em 2003. Mostrou a uma sociedade machista, racista e gordofóbica que o corpo de uma mulher negra e gorda é lindo. Ela não precisava, mas tornou pública sua bissexualidade porque uma mulher do nosso tempo já pode fazer – ou deveria – o que quiser com seu desejo, não é mesmo?

“Meu pai diz que eu não carrego, mas que eu sou a própria bandeira! Ao defender a minha existência como uma mulher gorda, bissexual, preta, isso há tantos anos, quando nada desses assuntos era pauta ainda, coloquei meu corpo a esse serviço”, disse ela em entrevista à revista Marie Claire em 2023.

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Mas ser livre em um país conservador tem um preço. Depois da entrevista ao “Pasquim”, Leila Diniz perdeu trabalhos, teve que se apresentar ao Dops, e a ditadura instaurou a censura prévia à imprensa, o que passou para a História como “o decreto Leila Diniz”. Por outro lado, quem hoje acha que uma barriga de oito meses de gravidez deve ser escondida na praia?

Preta, por sua vez, enfrentou as reações do nosso tempo: ataques misóginos e racistas, a contestação pública de suas escolhas pessoais e de suas intenções, o ódio nas redes e a violência de humoristas sem talento. Só não teve que ir ao Dops porque a geração de seu pai já tinha afastado de nós esse cálice.

Quando uma mulher deixa de lado a peça de roupa pensada para constrangê-la ou vai à praia com seu corpo fora do padrão, ela atesta um processo de libertação. Leila Diniz fez isso há 50 anos. Preta Gil nos últimos 20 anos. As duas entenderam que a cultura machista que controla os corpos das mulheres pode estar também dentro de nós. E se libertaram, apesar do medo, da insegurança, das críticas e da violência. A presença das duas nos propõe uma pequena revolução do significado: um olhar mais amoroso para nós mesmas e um grande dane-se para a pressão patriarcal.

Alguma coisa me diz que no futuro, talvez daqui a 50 anos, uma compositora, alguém assim meio Rita Lee, há de escrever uma canção para nos dizer que toda mulher é meio Preta Gil.

Renata Izaa é editora do Caderno Ela Veste Rio

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