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São Francisco de Assis: uma Herança Imortal na Fé, na Arte e na Cultura. Por Renato Queiróz

16 - 22 minutos de leituraModo Leitura

A figura de São Francisco de Assis é uma daquelas raras almas cuja luz transcende em muito o seu contexto histórico e geográfico, projetando-se como um arquétipo universal de amor, simplicidade e fraternidade com toda a criação.

É profundamente comovente perceber como seu espírito se enraizou por todo o globo, encontrando morada nos mais diversos corações e culturas. Do interior da Itália às metrópoles modernas, seu nome é sinônimo de paz.

No Brasil, não há cidade, por menor que seja, que não guarde uma referência a ele, seja numa igreja secular, numa imagem no jardim ou no coração de um devoto. Na Bahia, em especial, a devoção franciscana é um capítulo à parte na história da fé brasileira, se fez para glorificar a vida.

Senta que lá vem História!

Caro leitor, me permita a intimidade: Não se preocupe em fazer esta jornada de uma só vez. Um caminho tão bonito merece suas paradas, seus momentos de silêncio para que a paisagem interior se acomode.

A música, assim como a vida, ganha outro sabor quando somos generosos com as nossas pausas.

Por isso, respire.

Esta não é uma corrida, é uma peregrinação. E para que você possa saborear cada passo, convido você a atravessar conosco os quatro atos desta história musical.

ATO PRIMEIRO – Francisco de Assis e Seu Cântico Universal
ATO SEGUNDO – Os Dois Franciscos da Bahia: Entre a Poesia e a Epopeia
ATO TERCEIRO – As Sinfonias do Espírito: A Música Encontra Francisco
ATO QUARTO – O Legado que Nunca Cessa de Cantar

ATO PRIMEIRO – Francisco de Assis e Seu Cântico Universal

Há uma história que poucos contam sobre Salvador – uma que não está apenas nas pedras dos seus templos, mas que pulsa no ritmo da cidade. É a história de como uma mesma terra conseguiu abrigar, com igual devoção, dois santos tão distintos: Francisco de Assis, o poeta da criação, e Francisco Xavier, o aventureiro da fé.

Essa dupla padroeira não é mera coincidência; é o retrato vivo de como o sagrado se manifesta de diferentes formas para acolher as múltiplas necessidades da alma humana.

O Irmão Sol e a Cidade Forte. Quando os primeiros frades franciscanos chegaram a Salvador, trouxeram nos olhos o mesmo assombro que seu fundador tinha diante da criação.

A natureza exuberante da Bahia devia lembrá-los dos versos do “Cântico do Irmão Sol”, aquela ode sublime onde todas as criaturas são chamadas de irmãs. Mas a verdadeira maravilha aconteceu quando essa espiritualidade encontrou raízes no solo baiano.

A construção do Convento de São Francisco, iniciada em 1708, foi uma epopeia que durou quase três décadas. A data de 1708 é frequentemente citada e não está errada, mas refere-se a um marco específico dentro de um processo muito mais longo e complexo. A história é a seguinte:

Primeira Obra (c. 1587): Os frades franciscanos já estavam em Salvador e iniciaram sua primeira igreja e convento no local por volta de 1587. Esta construção era muito mais modesta.

Segunda Obra (Início do séc. XVIII): A construção do magnífico complexo barroco que vemos hoje foi, de fato, uma “epopeia” ao longo do século XVIII. A data de 1708 está corretamente associada ao início das obras da Igreja da Ordem Terceira de São Francisco (famosa por sua fachada de pedra esculpida), que é anexa ao convento.

A “Igreja Dourada”: A construção da igreja conventual principal (a “Igreja Dourada” propriamente dita, com sua espetacular talha barroca) teve suas obras principais intensificadas a partir de 1686, com a maior parte da ornamentação interna ocorrendo entre 1740 e 1750.

Portanto, dizer que a construção “teve início em 1708” é uma simplificação válida para um texto literário, pois marca o reinício ou a fase mais emblemática da obra. No entanto, historicamente, é preciso entender que os franciscanos já estavam no local desde o século XVI, e a construção do complexo foi um empreendimento secular.

Imagine os artesãos trabalhando naquela talha para se tornar dourada, sabendo que estavam criando não apenas um templo, mas um paradoxo: como celebrar com ouro aquele que abraçou a pobreza mais radical?

A resposta está na própria alma do povo baiano – que sabe transformar contradições em beleza. A essência de uma cultura forjada na própria síntese de opostos: sagrado e profano, alegria e dor, África e Europa, riqueza e pobreza.

O que talvez nem os próprios frades imaginassem era como Francisco de Assis, o santo italiano do século XIII, se tornaria tão baiano. Sua figura dócil, que fala com pássaros e acolhe lobos, encontrou eco numa cultura que sempre entendeu que fé e natureza são irmãs siamesas.

Nas ruas de Salvador, Francisco tornou-se também o santo do povo, aquele que compreende a linguagem simples da vida e da gente cotidiana.

ATO SEGUNDO – Os Dois Franciscos da Bahia: Entre a Poesia e a Epopeia

Enquanto a devoção a São Francisco de Assis crescia como uma planta que encontrava solo fértil, foi no desespero que Salvador descobriu seu outro protetor.

O ano de 1686 ficaria marcado a fogo na memória da cidade. A peste bubônica – “essa doença terrível que incha o corpo com dolorosos caroços e quebra a vida em poucos dias” – chegou como um fantasma e espalhou o medo.

As ruas, normalmente vibrantes, amanheciam desertas. O comércio, outrora buliçoso, fechava suas portas. Nos lares, o silêncio pesava mais que o luto.

A medicina da época pouco podia fazer além de acompanhar a agonia. Foi então que, no auge do desespero, a cidade lembrou-se de um santo que havia enfrentado mares e culturas distantes: Francisco Xavier.

Os jesuítas, que conheciam bem as histórias dos milagres do “Apóstolo do Oriente”, organizaram uma procissão que era ao mesmo tempo um grito de socorro e um ato de esperança. Carregaram sua imagem pelas ruas adoecidas, enquanto a população, entre lágrimas e preces, pedia por misericórdia.

E então aconteceu o que muitos chamariam de milagre: a peste começou a recuar. Dia após dia, menos casos apareciam, até que a epidemia desapareceu por completo.

O alívio foi tão grande que a Câmara Municipal, representando todo um povo agradecido, fez uma promessa solene: Francisco Xavier seria para sempre o padroeiro secundário de Salvador, com sua festa celebrada perpetuamente no dia 3 de dezembro.

O que verdadeiramente fascina nessa história é como uma mesma cidade consegue abraçar com igual fervor duas expressões tão diferentes da santidade.

De um lado, Francisco de Assis – o místico que encontra Deus no canto de um pássaro, no murmúrio de um riacho, na simplicidade de uma vida despojada. Do outro, Francisco Xavier – o missionário incansável que atravessou oceanos, enfrentou perigos e realizou curas extraordinárias.

Essa dualidade revela algo profundo sobre a alma de Salvador: ela é grande o suficiente para conter tanto a contemplação quanto a ação, tanto a doçura quanto a coragem. Nos tempos de paz, aprende-se com Francisco de Assis a arte de viver em harmonia. Nos momentos de crise, busca-se em São Francisco Xavier a força para superar. Todo 3 de dezembro, mantém viva a memória daquele milagre que salvou a cidade.

Hoje, passados séculos, essa dupla devoção é contínua e viva. Talvez essa seja a lição mais bonita que Salvador nos dá: que a fé não é uma coisa única, mas um rio de muitas correntes. Que podemos, sim, nos ajoelhar tanto diante do santo que abraçou o leproso quanto daquele que enfrentou os mares. Porque no fim, seja cantando às criaturas ou combatendo epidemias, ambos nos lembram do que há de mais nobre no espírito humano: a capacidade de encontrar o divino nos caminhos mais diversos.

A relação de São Francisco Xavier com a cidade é, sobretudo, umbilical através dos jesuítas, que foram fundamentais na evangelização e na educação do Brasil Colônia.

Figuras como o Padre Manuel da Nóbrega e o Pe. José de Anchieta, que aqui desembarcaram, eram espiritualmente filhos de Inácio de Loyola e de Francisco Xavier.

Estes missionários, inspirados pelo fogo apostólico de Xavier, que morreu às portas da China, foram os grandes educadores de Salvador nos seus primórdios, fundando colégios e seminários que moldaram a elite intelectual e religiosa da época.

Mas, como se diz, isso já é outra história…

Voltemos ao nosso primeiro e doce Francisco, o de Assis. Sua jornada, iniciada em 1182 como Giovanni di Pietro di Bernardone, é um testemunho eterno de transformação interior.

Filho de um abastado comerciante de tecidos, sua juventude foi marcada por sonhos mundanos de glória militar e prazeres efêmeros, até que as experiências do cativeiro em Perugia e, de forma mais crucial, um encontro visceral e corajoso com um leproso, operaram uma metamorfose radical em sua alma. Ao beijar as chagas daquele homem, Francisco encontrou o rosto de Cristo sofredor.

Esse momento de graça e coragem o levou a renunciar publicamente a toda a sua herança, diante do bispo e de seu pai, trocando as riquezas materiais pela riqueza espiritual da pobreza evangélica.

Dessa renúncia nasceu um dos movimentos espirituais mais férteis e duradouros da história. Vestindo um hábito simples, Francisco tornou-se um pregador itinerante, um jogral de Deus, que desenvolveu uma conexão única e poética com os marginalizados e com a natureza.

Francisco não via o mundo criado como um recurso, mas como uma grande família. Seus sermões aos pássaros, o pacto de paz com o lobo de Gubbio e, de forma sublime, o “Cântico do Irmão Sol” – onde louva a Deus através do “Irmão Sol”, da “Irmã Lua”, do “Irmão Fogo” e até da “Irmã Morte Corporal” – são a expressão máxima de uma fraternidade cósmica que antecipou em séculos os conceitos modernos de ecologia e interdependência.

Esta visão de ecologia e interdependência não era um mero romantismo, mas uma teologia vivida que influenciaria profundamente a filosofia do Renascimento.

Sua revolução espiritual atraiu uma multidão de seguidores, dando origem à Ordem dos Frades Menores. Foi também para sua amiga e confidente, Santa Clara Offreduccio, que Francisco ofereceu um caminho, cortando seus cabelos e fundando a Ordem das Clarissas, o ramo feminino de sua família espiritual.

A relação entre Francisco e Clara é um dos mais belos diálogos da hagiografia cristã, uma união de almas fundada no ideal de pobreza radical e no amor a Cristo. Para os leigos que desejavam viver seu ideal no mundo, ele ainda fundou a Terceira Ordem, demonstrando que seu chamado à santidade era democrático e universal.

O ápice de sua identificação com Jesus Cristo ocorreu em 1224, no Monte Alvernia, quando, em êxtase de oração, recebeu em seu corpo os estigmas, as chagas sagradas da Paixão.

Este fenômeno, um selo divino de amor, marcou-o profundamente em seus últimos anos.

Já cego e debilitado, partiu para a “Irmã Morte” em 3 de outubro de 1226, na sua amada Porciúncula.

Canonizado em apenas dois anos, um testemunho do impacto de sua santidade, sua festa é celebrada em 4 de outubro, data que se tornou um dia global de bênção dos animais e de reflexão sobre seu legado de cuidado com a Criação.

ATO TERCEIRO – As Sinfonias do Espírito: A Música Encontra Francisco

O espírito franciscano, contudo, nunca deixou de ecoar e inspirar. A famosa “Oração da Paz” (“Senhor, fazei-me instrumento de vossa paz…”). É consenso entre os estudiosos que esta oração não foi escrita por São Francisco. Ela surgiu pela primeira vez de forma impressa em 1912, em uma pequena revista espiritual francesa chamada La Clochette (“O Sininho”), publicada por um grupo católico.

Embora de autoria anônima e do início do século XX, encapsula com perfeição a essência do seu carisma. E essa mesma essência tem servido de inspiração para artistas de todos os tempos.

A figura de São Francisco de Assis, em sua simplicidade revolucionária, não cativou apenas fiéis e religiosos – ela conquistou o coração de alguns dos maiores compositores da história.

Franz Liszt, já no ocaso de sua vida, dedicou ao santo de Assis um de seus mais profundos oratórios em 1882. Não era uma obra qualquer, mas o testamento espiritual de um homem que também conheceu os excessos mundanos antes de buscar refúgio na fé.

Talvez a mais extraordinária homenagem musical ao poverello tenha surgido quase um século depois, pelas mãos do francês Olivier Messiaen.

Olivier Messiaen (1908-1992) foi uma das vozes mais originais da música do século XX. Muito mais que um compositor e organista, era um explorador de sons que via a música em cores, uma condição conhecida como sinestesia. Sua arte ecoa o mesmo espanto diante da criação que moveu São Francisco de Assis em seu “Cântico das Criaturas”.

Sua grande paixão era o canto dos pássaros, que ele registrava com a precisão de um cientista e a alma de um poeta, transformando-o no coração de suas obras. Dessa forma, tal como Francisco louva o “Irmão Sol” e a “Irmã Lua”, Messiaen compunse hinos orquestrais à irmandade cósmica.

Sua música é uma jornada espiritual que vai da fé radiosa de “A Ascensão” à comovente meditação sobre a eternidade em “O Quarteto para o Fim dos Tempos”. Messiaen não compunha apenas sons; tecia experiências transcendentais, erguendo uma ponte entre o mundo que ouvimos e o mistério que São Francisco celebrou. Sua ópera “Saint François d’Assise” é uma verdadeira peregrinação sonora que se estende por mais de quatro horas – não como um fardo, mas como um convite à contemplação.

Messiaen, com sua linguagem única que mistura o canto dos pássaros com complexas estruturas rítmicas e harmonias que parecem vir de outro mundo, não quis apenas contar a história do santo. Ele tentou fazer algo ainda mais ousado: traduzir em sons o indizível, aquela experiência franciscana de encontrar Deus em cada criatura, do irmão sol à irmã morte.

O compositor, que também era um profundo teólogo, via em Francisco não apenas um tema inspirador, mas a própria encarnação de uma verdade musical: que a criação inteira é uma sinfonia divina. Cada acorde, cada silêncio, cada explosão de cor orquestral em sua obra parece ecoar o assombro de Francisco diante do mundo – esse mesmo assombro que levou o santo a compor o primeiro poema em língua italiana, o “Cântico das Criaturas”.

De certa forma, Messiaen completou com sons o que Francisco começou com palavras: um hino de louvor à criação em toda sua complexidade e beleza.

No cinema, a canção “Irmão Sol, Irmã Lua”, de Donovan, para o filme homônimo de Franco Zeffirelli (1972), popularizou sua mensagem de forma tocante e pastoral, tornando-se um hino da contracultura e da busca por uma vida autêntica.

No Brasil, a “Canção de Francisco”, do Padre Zezinho, tornou-se um hino nas comunidades católicas, com sua melodia simples e letra acessível que fala de paz, bem e fraternidade.

ATO QUARTO – O Legado que Nunca Cessa de Cantar

E nesse cenário de grandes compositores fascinados por São Francisco, o Brasil ofereceu sua própria joia musical através do maestro e compositor Marcos Vianna. Viveu e trilhou seu caminho artístico com uma sensibilidade peculiar que o tornou um dos nomes fundamentais da música sacra brasileira.

Marcos Vianna (n. 15 de outubro de 1945) é um cantor, compositor e violonista brasileiro, conhecido por sua música folk de temática espiritual e contemplativa. Seu álbum “Francisco de Assis” (1970), uma obra fundamental da MPB de inspiração franciscana. Diferentemente do que se pode supor, ele não era um maestro de música sacra erudita. Marcos Vianna está vivo e seguiu lançando música, com um álbum inédito publicado em 2022, “O Caminho das Águas”.

O que talvez muitos não saibam é que Vianna estabeleceu com o santo de Assis um diálogo musical dos mais tocantes – uma conversa íntima que atravessou décadas de sua produção.

Diferente dos europeus com suas grandes óperas e oratórios monumentais, o compositor brasileiro parece ter captado a essência franciscana por outro ângulo: o da simplicidade que comove, da melodia que nasce natural como o canto dos pássaros que tanto encantavam Francisco.

Não se trata de uma simples homenagem, mas de uma verdadeira sintonia espiritual entre criador e criatura. Vianna, com seu conhecimento profundo da linguagem musical sacra, soube encontrar os acordes certos para expressar aquilo que nas palavras sempre parece faltar: o encanto diante da criação, a humildade que se torna grandeza, a pobreza que se revela riqueza de espírito.

Em suas composições dedicadas ao santo, percebe-se que Vianna não estava apenas escrevendo sobre Francisco – estava, de certa forma, tentando tornar audível a mesma harmonia que o poverello de Assis ouvia no mundo. Uma música que não impõe, mas convida; que não espanta, mas acolhe – muito à maneira franciscana.

Sua peça mais conhecida e celebrada é a “Missa de São Francisco de Assis”. Esta missa para coro e orquestra é uma obra-prima que funde a solenidade da tradição polifônica com uma linguagem harmônica contemporânea, por vezes impressionista, que evoca a serenidade e a luminosidade associadas ao santo.

Os críticos destacam nela uma qualidade contemplativa única; o “Sanctus”, por exemplo, é frequentemente descrito como uma elevação etérea, enquanto o “Agnus Dei” transmite uma profunda piedade e humildade. É uma música que não impõe, mas convida à oração e à interiorização, capturando a essência de uma fé alegre e despojada.

Para além da Missa, o catálogo de Vianna em honra ao santo é rico e variado. A “Cantata São Francisco de Assis” é uma obra de maior fôlego dramático, que narra episódios marcantes da vida do Pobrezinho, como o encontro com o leproso e o Sermão aos Pássaros. Através de solos vocais expressivos e coros poderosos, Vianna pinta quadros sonoros que são ao mesmo tempo narrativos e meditativos.

Outra pérola é o “Cântico das Criaturas”, uma ambientação musical do texto original de São Francisco. Nesta obra, Vianna abandona um pouco a estrutura formal da missa para criar uma atmosfera mais lírica e livre, onde cada “irmão” (Sol, Lua, Água) é celebrado com uma textura e uma cor orquestral específica, demonstrando uma fina percepção poética.

Menções honrosas devem ser feitas a peças como “Oração pela Paz” (uma ambientação da oração atribuída ao santo), “São Francisco e o Lobo de Gubbio” (uma peça de caráter mais narrativo e pictórico) e “Hino ao Sol”, uma breve e radiosa aclamação. O que unifica toda essa produção é a capacidade de Vianna de comunicar, sem sentimentalismo barato, os valores centrais do franciscanismo: a alegria na simplicidade, a compaixão universal e a reverência perante a criação. Sua música funciona como uma ponte, levando o ouvinte moderno a experimentar um vislumbre daquela “perfeita alegria” que Francisco tanto pregava.

A presença de Francisco não habita apenas a solidez das pedras dos conventos ou a serenidade dos claustros, mas se faz ouvir nas partituras de Vianna, que soube traduzir em melodia aquele jeito tão particular de Francisco encontrar Deus nas coisas simples. A música de Vianna dialoga com o gesto cotidiano de quem para oferecer um pouco de água a um animal sedento, ou no olhar de quem enxerga, no próximo, um irmão.

E suas obras para São Francisco? Minha nossa! Na “Missa de São Francisco”, ele capturou aquela simplicidade que é a mais alta sofisticação – como o santo que encontrava Deus num raio de sol. Nos “Cânticos da Criação”, fez a natureza cantar em perfeita sintonia com o criador. E no “Hino das Criaturas”, transformou em melodia o poema que Francisco compôs em sua cama de dor.

Mas Vianna não era só música sacra. Em suas “Variações Sinfônicas” ou na “Cantata da Paz”, mostrava essa alma plural que sabia falar de Deus e dos homens ao mesmo tempo. Sempre com aquela marca registrada: a capacidade de traduzir em sons os sentimentos que as palavras não conseguem nomear.

Não é à toa que em 2003 lhe deram o Prêmio Nacional de Cultura. Sua música tem a mesma pureza do gesto de quem oferece água a um passarinho – nasce naturalmente, como um rio que encontra seu curso. Como Francisco, Vianna compreendeu que as grandes revoluções nascem do desapego, e que a verdadeira riqueza está em amar sem contar o custo.

Quando ouço suas composições, vejo que Vianna construiu uma passarela de sons entre o século XIII e nossa época tão acelerada – um convite doce e insistente para que sejamos, cada um de nós, instrumentos de paz nessa grande sinfonia universal. Porque, como ele tão bem mostrou, a melodia do amor nunca envelhece – apenas encontra novas formas de fazer nosso coração dançar.

Ah, meu doce Poverello! Essa palavra que vem da Itália como um carinho, como um afago na alma… Se a gente for traduzir direto, seria “pobrezinho” – mas, meu irmão, que tradução pobre para algo tão rico!

Esse apelido – Poverello – era como os companheiros de Assis chamavam nosso Francisco. Não por pena, Deus me livre! Mas por uma admiração profunda por aquele homem que tinha tudo e escolheu ter nada – ou melhor, escolheu ter tudo do jeito que realmente importa.

Quando dizemos “Poverello”, estamos falando daquele que abraçou a pobreza não como uma desgraça, mas como uma noiva radiante. É como se disséssemos: “Olha só esse louco maravilhoso que encontrou a liberdade nas coisas simples, que descobriu que a verdadeira riqueza mora no desapego!”

É a poesia italiana tentando capturar em uma palavra toda a doce loucura de Francisco – esse homem que trocou o conforto do berço de ouro pelo travesseiro de pedra, e achou que estava no paraíso. Que preferia conversar com os pássaros a discutir com os poderosos. Que via em cada criatura – do sol à morte – um irmão para ser amado.

“Pobrezinho” até tenta, mas não consegue carregar toda a ternura, todo o afeto, toda a reverência que “Poverello” carrega. É como querer traduzir o cheiro da chuva na terra seca – até dá para explicar, mas a experiência mesmo… ah, a experiência fica faltando!

Por isso, meu amigo, quando ouvir “Poverello”, não pense em miséria. Pense na riqueza de quem não precisa de riquezas. Pense na liberdade de quem não carrega bagagens. Pense na leveza de quem descobriu que voa melhor quando está despojado.

Como diria meu velho Vinicius, é a “simplicidade do anjo que não sabe que é anjo” – e é justamente por não saber que consegue ser tão divino…

A vida do poverello nos ensina, com uma clareza que atravessa os tempos, que as revoluções mais profundas não começam com gritos estridentes, mas com um silencioso abraço ao despojamento – lição que Vianna compreendeu profundamente e soube transformar em arte.

Ele nos mostra que a felicidade, essa companheira tantas vezes esquiva, não mora no acúmulo de posses, mas na capacidade de amar sem reservas – de estender o afeto incondicionalmente a todos os seres deste imenso e diverso concerto da Criação.

E é justamente através da arte de compositores como Vianna que esse chamado à fraternidade continua a ressoar. Como uma semente levada pelo vento, o legado de Francisco encontra solo fértil em cada nova geração, convidando-nos suavemente a nos tornarmos, cada um à sua maneira, um instrumento de paz.

A música de Vianna, nesse contexto, não é apenas uma homenagem; é uma ponte sensível que conecta a inspiração do século XIII à sensibilidade do nosso tempo, lembrando-nos que a melodia da compaixão nunca envelhece e que a mensagem de São Francisco continua tão urgente quanto há oitocentos anos.

Aqui, um poema musical sobre a vida do grande personagem místico do séc. XII, São Franciscot de Assis.

O “Poverello” (O Pobrezinho), também conhecido como o “Bardo de Deus”, pois era intensamente ligado à música e tornou-se o símbolo da afeição humana à natureza.

Música e natureza são as colunas deste disco, que traz além das trilhas instrumentais que vão do sinfônico do sacro, à world-music e new age, belas canções voltadas para o tema.

O vídeo traz cenas de Assis e dos Montes Alverne e Subásio e também quadros do pintor medieval Giotto que nos conta a história de Francisco através da arte.

Aqui, Marcus Viana – Francisco de Assis (Álbum Completo)

SONZAÇO!
Renato Queiroz é professor, compositor, poeta e um apaixonado pela história da música

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