‘Viúva Negra’ e ‘Nomadland’ expõem falso progressismo de Hollywood, diz Zizek
A pandemia de Covid-19 representou um enorme retrocesso na luta pela emancipação das mulheres. A população feminina foi proporcionalmente muito mais infectada pelo vírus em relação à
masculina, e os trabalhos mais arriscados e malpagos de enfermagem e cuidado ficaram em larga medida a cargo das mulheres. O lockdown também significou uma carga maior de trabalho doméstico para as mulheres, sem falar no aumento da violência familiar.
Infelizmente, a ascensão do movimento #MeToo não ajudou muito nessa situação. Em vez de abordar os fatos duros da exploração das mulheres e suas causas, ele se concentrou nos problemas que afetam principalmente uma camada mais privilegiada: abordagens desrespeitosas, violência implícita em avanços sexuais, sexo coagido pela posição masculina de poder etc.
A cultura do cancelamento e da lacração ofereceu assim um complemento ideal para a dura realidade da exploração e dominação das mulheres: criou-se a impressão de que algo estava sendo feito, um clima de atividade frenética e vigilância rigorosa que, no fundo, não mudou muita coisa na realidade social.
Longe de ser “radical demais”, como os críticos conservadores costumam acusar, a imposição incessante de novas regras é um dos casos exemplares de pseudo-atividade, de como fingir uma atividade frenética para garantir que, no fundo, nada mude de fato.
Para resistir às tentações da cultura da lacração, todo verdadeiro esquerdista deveria estampar na sua cabeceira ou mesa de trabalho o parágrafo de abertura de “A Alma do Homem sob o Socialismo”, em que Oscar Wilde aponta que “é muito mais fácil ter simpatia com o sofrimento do que com o pensamento”.
Nas palavras dele, as pessoas “encontram-se rodeadas pelos horrores da pobreza, pelos horrores da fealdade, pelos horrores da fome. É inevitável que elas se comovam fortemente com tudo isso. […] Consequentemente, com intenções louváveis, embora equivocadas, se dedicam muito séria e sentimentalmente à tarefa de remediar os males que veem. Mas seus remédios não curam a doença, só fazem prolongá-la. Na verdade, seus remédios fazem parte da doença. […] A meta adequada é buscar reconstruir a sociedade de tal forma que a pobreza se torne impossível. E as virtudes altruístas têm no fundo impedido a realização desse objetivo. […] É imoral usar a propriedade privada para aliviar os horríveis males que decorrem da instituição da propriedade privada”.
Esta última frase fornece uma fórmula concisa do que há de errado com a Fundação Bill e Melinda Gates. Não basta apenas dizer que a caridade dos Gates é baseada em uma prática brutal do mundo dos negócios —é preciso dar um passo além e denunciar também seu fundamento ideológico, a vacuidade de seu pan-humanitarismo.
O título do conjunto de ensaios de Sama Naami, “Refusal of Respect: Why We Should Not Respect Foreign Cultures, and Our Own Also Not” (recusa do respeito: por que não devemos respeitar culturas estrangeiras e nem a nossa), acerta a questão em cheio. Trata-se da única postura autêntica em relação às outras três variações da mesma fórmula.
Isto é, a fórmula subjacente à instituição caridosa dos Gates é: respeite todas as culturas, a sua e as demais. Já a fórmula nacionalista de direita é: respeite sua própria cultura e despreze as outras, inferiores. E, no politicamente correto, encontramos a seguinte fórmula: respeite as outras culturas, mas despreze a sua, que é racista e colonialista (é por isso que a cultura politicamente correta da lacração é sempre anti-eurocêntrica).
Contra essas três, a postura esquerdista correta deveria ser: traga à tona os antagonismos ocultos da sua própria cultura, vincule-os aos antagonismos de outras culturas e, em seguida, engaje-se em uma luta comum entre aqueles que lutam aqui contra a opressão e dominação operando em nossa cultura e aqueles que fazem o mesmo em outras culturas.
O que isso significa é algo que pode soar chocante, mas no qual devemos insistir: você não precisa amar nem respeitar os imigrantes —o que você precisa fazer, fundamentalmente, é mudar a situação para que eles não tenham que ser o que são.
O cidadão de um país desenvolvido que quer menos imigrantes e está disposto a fazer algo para que eles não tenham que vir a este lugar (de que, para começar, a maioria nem gosta) é muito melhor que o sujeito humanitário que prega abertura aos imigrantes enquanto silenciosamente participa das práticas econômicas e políticas que levaram à ruína seus países de origem.
Há no mercado, hoje, toda uma série de produtos desprovidos de sua propriedade maligna: café sem cafeína, creme sem gordura, cerveja sem álcool… E a lista continua: sexo virtual como “sexo sem sexo”, a arte da gestão especializada como “política sem política” e até o multiculturalismo tolerante liberal de hoje como uma experiência do “outro desprovido de sua alteridade perturbadora”.
Devemos acrescentar a essa série outra figura-chave do nosso ambiente cultural: o manifestante descafeinado, um manifestante que diz todas as coisas certas, mas de alguma forma as priva de seu veio crítico.
Ele tem horror ao aquecimento global, combate o machismo e o racismo, reivindica uma grande mudança social, e todos estão convidados a juntar-se a ele, a participar do grande sentimento de solidariedade global —o que significa: você não é obrigado a mudar sua vida (quem sabe contribua com uma instituição de caridade aqui e ali), siga com sua carreira, você age de maneira impiedosamente concorrencial, mas está do lado certo…
É mesmo de se espantar que encontramos essa mesma postura crítica descafeinada nos filmes recentes de Hollywood? Há muitos filmes falsamente progressistas que se posicionam pela causa certa (abertura aos imigrantes, a situação difícil da classe trabalhadora nômade, solidariedade feminina), mas lidam com o tema de forma a neutralizar seu veio crítico. Vejamos como isso acontece em três filmes recentes: “Viúva Negra”, “Luca” e “Nomadland”.
“Viúva Negra” é geralmente considerado um filme metagenérico, um amálgama do universo dos super-heróis com o dos agentes secretos, como Jason Bourne ou James Bond. No entanto, uma caracterização mais pertinente seria a de um filme da Marvel produzido nas condições da onda do #MeToo. Como essa feminização se inscreve na textura do filme?
O foco emocional do filme é a relação entre Natasha (Scarlett Johansson) e Yelena (Florence Pugh), duas irmãs envolvidas em uma relação complexa de amor e competição, cuidado e desconfiança. Em um prólogo que se passa 20 anos antes da ação principal, descobrimos que Natasha e Yelena não são irmãs de verdade: em 1995, o supersoldado russo Alexei Shostakov e a viúva negra Melina Vostokoff, agentes secretos russos, se passam por uma família em Ohio com suas filhas postiças Natasha Romanoff e Yelena Belova.
Terminada a missão do casal nos EUA, a “família” escapa de volta para a Rússia, via Cuba, onde o general Dreykov envia as duas meninas ao Quarto Vermelho para serem treinadas a se tornarem viúvas negras, assassinas perfeitas cuja mente é controlada.
Mesmo 20 anos depois, as duas irmãs ainda anseiam por um lugar adequado em uma família nuclear (mesmo tendo plena consciência de que a família nuclear da qual foram brutalmente arrancadas como meninas era uma farsa). Libertação para elas não significa a libertação em relação às amarras familiares, mas a liberação do dispositivo de controle mental que foi instalado em seus cérebros por Dreykov.
Na tentativa de reconquistar sua liberdade, as heroínas resgatam da prisão seu pai “afetivo”, Shostakov. É através dele que as duas esperam chegar a Dreykov, que contrariamente ao que se imaginava, ainda está secretamente vivo e operante. Contudo, esse pai agora é uma figura idosa um tanto fanfarrona, confusa e impotente.
De certa forma, a chave do filme está nesse par de figuras paternas: o pai que lhes foi imposto como pai “afetivo” é fraco e risível, e sua ausência é preenchida por uma figura que, ao exercer uma autoridade de caráter simbólico sobre suas “filhas”, controla diretamente seus cérebros.
Cumpre levantar aqui uma pergunta simples: por que todas as agentes de Dreykov são mulheres e por que até mesmo o agente químico do Quarto Vermelho que permite com que Dreykov controle suas mentes foi desenvolvido por uma mulher (Melina Vostokoff, a falsa mãe das heroínas)?
Isso não indicaria que Dreykov, longe de ser simplesmente uma fantasia masculina extrema de dominação total sobre as mulheres, é antes uma figura de fantasia feminina? Essa fantasia, contudo, é fraca e ineficaz. É por isso que, apesar de o ator Ray Winstone geralmente se sair bem no papel do malvado, o personagem de Dreykov acaba não colando muito, e a última meia hora do filme (a tão adiada batalha contra Dreykov) é monótona e achatada.
É neste ponto que o filme se equivoca: o que hoje, em uma época de enfraquecimento da autoridade paterna, impede a plena emancipação das mulheres não é (ainda) um caricato aparato de controle mental, mas sim um conjunto de condições sociais e ideológicas. A figura de Dreykov como o inimigo final é um fetiche, uma máscara ridícula que ofusca essas condições.
Uma ofuscação semelhante é facilmente detectável em “Luca” (Enrico Casarosa, 2021). O filme se passa na Riviera italiana nos anos 1950-60 e gira em torno de um jovem monstro marinho que possui a capacidade de assumir a forma humana em terra. Ele explora a cidade de Portorosso com seu novo melhor amigo humano e passa por um verão que muda sua vida.
O uso de monstros marinhos como “metáfora para o sentir-se diferente” (guarda-chuva que abarca desde pessoas LGBTQIA+ a imigrantes) soa legal, mas é ideologia do pior tipo: nesse universo não há antagonismos entre monstros marinhos ou entre humanos, de modo que só basta confiança, amizade e compreensão tolerante.
E o que há de errado então com “Nomadland” (Chloé Zhao, 2020) que parece se concentrar precisamente nessas condições? Na Alemanha e em alguns outros países, está surgindo recentemente uma vaga noção do que tem se chamado de “classismo”: uma versão de classe da política de identidade.
Os trabalhadores são ensinados a salvaguardar e promover suas práticas socioculturais e respeito próprio, são conscientizados do papel crucial que desempenham na reprodução social. O movimento operário torna-se, assim, mais um elemento na cadeia de identidades, como uma determinada raça ou orientação sexual.
Essa “solução” para o “problema dos trabalhadores” é o que caracteriza o fascismo e o populismo: são regimes que exprimem respeito pelos trabalhadores, admitem que eles são frequentemente explorados e (muitas vezes com sinceridade) querem tornar sua posição melhor dentro das coordenadas do sistema existente. À sua maneira, Trump estava fazendo isso, protegendo os legítimos trabalhadores estadunidenses dos bancos e da concorrência chinesa desleal.
Ora, “Nomadland” não seria um exemplo-mór desse tal “classismo”? O filme retrata o dia a dia de nossos “proletários nômades”, trabalhadores sem casa permanente que vivem em trailers pulando de um emprego temporário para outro.
Eles são apresentados como pessoas decentes, cheias de bondade espontânea e solidariedade mútua, habitando seu mundo próprio de pequenos costumes e rituais, desfrutando de sua modesta felicidade —até o trabalho ocasional em um armazém de empacotamento da Amazon flui bem… É assim que nossa ideologia hegemônica gosta de ver os trabalhadores (não é à toa que o filme foi o grande vencedor do último Oscar).
Embora as vidas retratadas sejam bastante miseráveis, o filme nos seduz no sentido de desfrutar delas, colocando em primeiro plano os detalhes encantadores de um modo de vida específico. O subtítulo de “Nomadland” poderia muito bem ser: aproveite sua condição de proletário nômade!
É precisamente a recusa de ser um elemento desses na cadeia de identidades que define o autêntico movimento dos trabalhadores. Em uma visita à Índia, tive a oportunidade de conversar com os representantes do grupo mais baixo da casta mais inferior dos “intocáveis”, os limpadores de privadas secas. Perguntei a eles qual é a premissa básica de seu programa, o que eles querem, e eles imediatamente responderam: “Não queremos ser nós mesmos, o que somos”.
Os trabalhadores são, para citar Jacques Rancière, a “parte dos sem parte” do corpo social, desprovidos de um lugar próprio nele, um antagonismo encarnado. Seria exigir muito de Hollywood esperar filmes sobre vidas que são a “parte dos sem parte” de nossas sociedades? “Parasita”, de Bong Joon-ho, conseguiu. “Coringa”, de Todd Phillips, também. Pode ser feito novamente.
Tradução de Artur Renzo.
Artigo publicado originalmente em https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2021/08/viuva-negra-e-nomadland-expoem-falso-progressismo-de-hollywood-diz-zizek.shtml