Vivas a Tom Zé – o gênio ressuscitado! por Renato Queiróz
Antônio José Santana Martins, conhecido como Tom Zé, nasceu em Irará, interior da Bahia, em 11 de outubro de 1936.
Senta que lá vem História!
Tom Zé é uma das figuras mais originais e controvertidas da MPB. Aprendeu a gostar de música ouvindo rádio em sua cidade natal a ponto de decidir estudar na Universidade Federal da Bahia, em Salvador, onde teve aulas com os professores Walter Smetak (compositor experimental), Hans Joachin Koellreutter (o introdutor do dodecafonismo no Brasil), Ernest Widmer, e aprendeu harmonia, contraponto, composição, piano, violoncelo. Nessa fase, começou a compor canções de forte teor satírico e político.
Este período em Salvador foi marcado por um momento curioso e de destaque na carreira de Tom Zé: sua breve, porém fundamental, passagem como professor de violão. Foi nessa condição que ele, já uma figura ativa na cena musical baiana, cruzou o caminho do jovem Moraes Moreira.
Os dois se conheceram por volta de 1963 ou 1964. Moreira, um “rapaz comprido” com roupas típicas do interior, procurou Tom Zé para aulas.
Impressionado com o potencial composicional do jovem, Tom Zé decidiu ensiná-lo de graça. Ele lembrava de Moreira como um aluno com “interesse voraz, uma gulodice de conhecimento”, que em apenas quatro meses assimilou tudo que o mestre podia lhe ensinar e já tocava violão melhor que ele.
Foi na reta final desse curso improvisado que Tom Zé, que já conhecia o poeta Luiz Galvão, decidiu apresentá-lo a Moraes Moreira. Essa conexão, feita por Tom Zé, foi a semente criativa que uniu o talento musical de Moreira ao talento literário de Galvão.
Anos mais tarde, a dupla Moreira e Galvão, ao se juntarem a Baby Consuelo, Pepeu Gomes e Paulinho Boca de Cantor, formariam o lendário conjunto Novos Baianos. “E lá foram eles, sem pai nem mãe”, como lembra Tom Zé, tomando a estrada rumo ao Rio de Janeiro em busca do sonho.
A relação de mentorato e amizade foi relembrada com gratidão por Moraes Moreira em 2017, na música “Obrigado Tom Zé”. Na letra, ele canta: “Tom Zé foi meu professor na escola que foi a única”, e confirma: “Tom Zé foi quem me ensinou acordes no violão, Tom Zé foi quem me falou sobre o poeta Galvão”.
Enquanto os Novos Baianos seguiam para o Rio, Tom Zé, por sua vez, traçava um rumo diferente, tendo se mudado para São Paulo em 1968. O destino, assim, separou os caminhos: uns pro Rio, outros para São Paulo, marcando o início de novos e decisivos capítulos na música brasileira.
Já em São Paulo, com Caetano Veloso no show “Arena Canta Bahia” Tom Zé se tornou uma figura central do movimento tropicalista. Seu estilo, que mesclava experimentalismo com raízes da cultura rural nordestina, se alinhava perfeitamente ao espírito antropofágico da Tropicália. Assim, Tom Zé deu sua contribuição original ao movimento com uma forte veia crítico-irônica.
São desse período duas de suas músicas mais conhecidas: “2001”, parceria com Rita Lee, registrada por Gilberto Gil no LP “Gilberto Gil (1969)” e por Os Mutantes, além de “São São Paulo, meu amor”, vencedora do IV Festival de MPB da TV Record, em 1968.
Seu álbum de estreia, “Grande Liquidação” (1968), é um marco desse período. Foi sob a inspiração do cotidiano dos paulistanos e dos códigos da sociedade da época que o artista concebeu e deu à luz o primeiro álbum de trajetória singular na música do Brasil. Grande liquidação é o título desse disco. Também reflexo da influência exercida no artista pelo filme São Paulo S.A. (1965), do cineasta Luís Sérgio Person
A produção de “Grande Liquidação” foi de João Araújo. Os arranjadores foram Damiano Cozzela e Sandino Hohagen pelo selo Mocambo, da gravadora Rozenblit. Com 12 faixas todas escritas por Tom Zé a produção teve como suporte musical dos conjuntos Os Versáteis e Os Brasões.
A escolha de uma gravadora de Recife, a Rozenblit, para lançar o disco de um artista baiano já estabelecido em São Paulo, é um detalhe revelador. Ele nos transporta para um cenário musical da época, pulsante e menos centralizado, onde artistas de diferentes regiões encontravam eco e espaço criativo longe do eixo hegemônico Rio-São Paulo.
A jornada desse álbum não parou aí. Como um testemunho de sua relevância atemporal, “Grande Liquidação” foi resgatado do esquecimento e relançado em CD pela Sony Music em 2000. Mais recentemente, o renascimento do vinil trouxe o trabalho de volta às prateleiras e vitrolas, com edições cuidadosas por gravadoras como a Polysom, em 2019.
A vitória de “São São Paulo, Meu Amor” no festival da TV Record em 1968 confirmou sua ascensão na MPB naquele momento.
No início da década de 70, Tom Zé ainda manteve certa popularidade com outro sucesso. Seu disco de 1972, “Se o caso é chorar”, que teve a produção musical do maestro e arranjador Rogério Duprat, continha a faixa-título que se tornou um grande hit.
Porém, seus trabalhos seguintes, sempre marcados pela inovação e pela inquietação criativa, de um olhar e pela perspectivas além do seu tempo, levaram-no a um ostracismo, amargado até o final dos anos 80.
De certa forma desiludido com a carreira, pensava em abandonar tudo, voltar definitivamente à terra natal e “ser frentista em um posto de gasolina de um primo”.
Um anônimo vendedor de discos contribuiria involuntariamente para sua volta.
David Byrne, interessado em world music, em uma viagem ao Brasil, em 1986, estava numa loja de discos no Rio de Janeiro procurando discos de samba e pagode.
Enganado pelo título de “Estudando o Samba”, um vendedor incluiu esse disco na seção da loja em que Byrne escolhia o que levar.
De volta aos Estados Unidos, o músico ficou pasmo quando ouviu o trabalho daquele ilustre desconhecido.
A música fragmentada, os ritmos não convencionais e a abordagem conceitual de Tom Zé dialogava perfeitamente com a vanguarda musical internacional.
Byrne imediatamente entrou em contato com Arto Lindsay, músico, arranjador e produtor norte-americano criado no Brasil e profundo conhecedor da cena musical local, atrás de alguma pista.
Introduzido por Lindsay à história do tropicalista que não havia se tornado popular, Byrne contratou Tom Zé para o seu então iniciante selo Luaka Bop.
Em 1990, produziu a coletânea “Massive Hits – The Best of Tom Zé”, que além de recuperar o trabalho do gênio no Brasil, o lançou para o mundo.
“Massive Hits – The Best of Tom Zé” foi aclamado pela crítica, ficando entre os dez melhores da década em todo o mundo, na avaliação da revista Rolling Stone.
A partir de então, o trabalho e o nome de Tom Zé vêm sendo crescentemente prestigiados pelo público, no exterior e no Brasil. Sua carreira não parou mais, com constantes lançamentos de CDs e shows nacionais e internacionais.
Discos como “Fabrication Defect: Com Defeito de Fabricação” (1998) e “Danç-Êh-Sá” (2022) mostram uma mente que nunca se acomodou.
O ano de 2025 estabeleceu-se como um marco singular na já vasta trajetória de Tom Zé, representando um momento de síntese e celebração máxima de seu legado. Nele, a figura do artista, então com 88 anos, foi alvo de uma dupla e significativa homenagem que coroou sua contribuição ímpar para a cultura brasileira, demonstrando como sua obra permanece profundamente relevante e atual.
O evento central que norteou esse período foi, sem dúvida, o lançamento da biografia “Tom Zé – Fiz Meu Berço na Viração”, escrita por Ivo Mineiro Teixeira e publicada pela Editora Hucitec (2025).
Mais do que um simples registro cronológico, a obra estabelece-se como chave para decifrar o universo do artista. O título, extraído de sua própria obra, é um conceito que define toda uma existência dedicada ao movimento, à transformação e à reinvenção – a “viração”.
O livro, ao detalhar essa trajetória única desde os tempos da Tropicália, oferece a base intelectual e histórica para compreender a profundidade de um criador que sempre operou à frente de seu tempo.
É justamente nesse contexto de reavaliação e celebração que ocorre a segunda grande homenagem do ano: a concessão a Tom Zé do título de cidadão paulistano, também em setembro de 2025. Esta não foi uma honraria isolada, mas um ato político e cultural que reconheceu formalmente o que a biografia explora em suas páginas: a imensa e singular contribuição do artista para a identidade cultural da cidade de São Paulo e do Brasil como um todo.
Os dois eventos estão intrinsecamente ligados; a biografia explica o “porquê” de sua genialidade, enquanto o título de cidadão representa o “reconhecimento” público e institucional dessa genialidade.
Este ano de consagração, no entanto, não surge do vácuo. É alimentado por uma fase de notável produtividade e resiliência do artista.
Seu retorno aos palcos após um problema de saúde – celebrado com o show “59, O Espetáculo” em 2023 – e o lançamento do aclamado álbum “Língua Brasileira” (2022), no qual reflete sobre a exuberância do português falado no Brasil, já sinalizavam um renascimento criativo.
Sua participação no documentário “O Nome Dela é Gal” (2021) também reforçava seu papel contínuo como guardião e intérprete da memória cultural de sua geração.
Portanto, 2025 pode ser entendido como o ápice de uma recente e fértil fase na carreira de Tom Zé. Nele, a publicação de “Fiz Meu Berço na Viração” e a outorga do título de cidadão paulistano atuaram em perfeita sintonia, selando um pacto entre a história (registrada no livro) e o presente (reconhecido pela cidade), consolidando definitivamente Tom Zé não como uma relíquia do passado, mas como um mestre cujo berço na viração garante sua eterna juventude artística.
Depois de “ressuscitado”, Tom Zé aprofundou seu método de “estudar” os gêneros. Para ele, isso significa uma desconstrução laboratorial: pegar um gênero como o samba, o pagode ou a bossa nova, investigar suas engrenagens e remontá-lo com elementos inusitados, criando algo familiar e radicalmente novo.
Agora, ele parece disposto a compreender, através dessa mesma lupa, o Tropicalismo que ele mesmo ajudou a criar.
Aqui, a atualíssima e atemporal canção “Senhor Cidadão” do disco “Se o caso é chorar”, de 1972. Com seu ritmo quase mecânico e sua letra que critica a alienação e a burocratização da vida moderna, a música soa maisr relevante do que nunca.
SONZAÇO!
Renato Queiroz é professor, compositor, poeta e um apaixonado pela história da música
