Aldeia Nagô
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Enfim, viramos robôs. Por Jorge Papapá

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Um dia acordei e percebi que tinha virado robô. Não foi assim, de repente, com antenas brotando da cabeça ou luzinhas piscando no peito — nada tão cinematográfico. Foi mais sutil: percebi quando apertei o botão de “aceitar termos de uso” sem ler, pela milésima vez, e senti uma paz estranha, quase espiritual. Como quem reza sem saber a quem.

Na rua, reparei que todo mundo andava com a mesma postura de atualização de software: cabeça baixa, tela acesa, dedo deslizando como se fosse uma prece digital. Cada um carregando sua própria alma em formato de aplicativo. De vez em quando alguém levantava os olhos, mas era só pra checar se o cabo do carregador tava na mochila.

As conversas, ah… essas viraram protocolos. Tudo cheio de “bom dia”, “vamos alinhar”, “segue anexo”, “me manda o link”, “me marca no post”. Eu, que cresci achando que emoção era um negócio meio torto, cheio de improviso, comecei a perceber que improviso virou quase crime. Onde já se viu alguém agir sem manual? Sem o tal procedimento padrão?

O talento, coitado, virou lenda urbana. Dizem que existe, mas ninguém mais vê. Está guardado num museu sem visitação, trancado entre um VHS e um fax.

Até o amor — aquele bicho selvagem que pulava no peito feito gato assustado — hoje anda comportado demais. Transparente, polido, igual vidro temperado. Não quebra: estilhaça. E ainda reflete a gente, deformado, multiplicado, como se dissesse: “calma lá, você só me ama porque o algoritmo calculou”.

E eu, que sempre tive medo da escuridão, me pego agora com medo da luz. Porque não é mais a luz do sol, que esquenta e perdoa. É a luz fria do refletor — essa que ilumina tudo, até o que a gente queria esconder. Essa que faz da vida um palco aberto, onde todos são personagens e ninguém mais sabe quem é o ator.

No fim das contas, talvez seja isso: enfim chegamos. Ao futuro, ao cansaço, ao brilho plástico. Ao silêncio que fala por notificações. À glória duvidosa de sermos máquinas que ainda sentem — mas disfarçam.

E seguimos. Uns atualizados, outros travando.

Todos tentando lembrar a senha da própria humanidade.

_Enfim raiou a santa luz do refletor.

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