A dor no coração de um espeto atravessado na mão. Por Bruno D’Almeida
Perdi minha família para a estupidez – Capítulo 01.
– Boa tarde, senhor João Ternura?
– Isso.
– Aqui é da Clínica Poder Mental.
– Do que se trata?
– Seu tio Adamastor deixou pagas quatro sessões de Constelação Familiar, e queremos agendar a primeira consulta.
– É o quê? Olha aqui, não tenho mais contato com esse senhor há dois anos.
– Seu tio está arrependido e quer o seu perdão. Todo mundo da família confirmou, só falta o senhor. Quando chegar aqui explicamos tudo direitinho. Temos disponível quarta, às 18h, e sexta, às 9h.
– Como vou perdoar quem tentou me matar?
– Aquele vídeo do senhor gritando “Natal desgraçado” com um espeto enfiado na mão virou meme, todo mundo sabe da história. Dê uma chance pra sua família. Quarta ou sexta?
– Quarta.
– Segue mensagem confirmando endereço. Aproveita e segue a gente no TikTok.
Na tela do celular, um homem uivava depois de ser estimulado a soltar com força o grito do macho interior. Uma mulher com batom vermelho agradecia ao dono da clínica a graça de ter aberto sua quinta loja de açaí com jujuba. Dr. Sebastião rebolava os quadris e, a cada mudança de ritmo de uma música de pagode, apontava para o ar suas especialidades: psicólogo, psicanalista e coach motivacional.
João Ternura abriu o guarda-roupa e pegou o álbum da família. Suas lembranças se misturaram entre o passado distante, o passado recente e o presente. Olhou a foto de quando tinha seis anos e estava dormindo agarrado a seu irmão Gabriel na mesma cama, com medo de fantasmas, depois de encontrarem a porta do quarto dos pais trancada e não poderem dormir no meio do casal. O pai flagrou a cena na manhã seguinte e registrou. Lembrou também do dia em que foi salvo pelo irmão de um afogamento na praia e do juramento de sempre um ajudar o outro.
A promessa foi quebrada naquele fatídico Natal há dois anos. Foi justamente Gabriel quem começou a confusão, chamando a prima Mariene de sapatão, que prontamente respondeu com uma sapatada voando na cara dele. Sorte que tia Elvira apartou.
Deitado na cama, João alisou a foto no colo da tia, sua referência tanto de lazer quanto de leitura. Ternura passava quase todo fim de semana na casa dela, porque era perto da praia da Barra e também por causa da coleção completa das histórias de Marcos Rey. Depois que Elvira Juliete entrou pra Igreja Losangular, queimou todos os livros de casa e trocou o sorriso meigo pelo rancor.
João lembrou que Elvira, naquele Natal da confusão, resolveu fazer uma pregação depois da sapatada. Abriu a Bíblia em um capítulo do Livro de Isaías e disse que a ira do Senhor iria castigar Mariene, que estava em pecado, e a todos que não se curvassem ao Deus da Guerra. Afonsinho, filho de Gabriel, na sequência, começou a fazer sinal de arma, apontou seu revólver imaginário para Mariene e para João gritando:
– Agora que a gente venceu as eleições, vocês vão sumir do mapa!
Foi aí que o choro de Ternura aumentou ao ver a foto de seu afilhado Afonsinho gordo e sorridente no álbum de família. Sempre foi um tio mais presente do que o próprio pai do garoto. Ternura lembrou de um Dia dos Pais especial, em que foi na escola de Afonsinho e recebeu uma caneca de presente. Gabriel estava foragido porque não pagava pensão. João assistiu comovido à apresentação do afilhado, que dançou com os coleguinhas uma coreografia de uma música sobre a preservação da natureza.
Os ponteiros do relógio na parede fizeram João voltar para as imagens do Natal de 2019. Lembrou que pediu respeito a Afonsinho. Foi aí que Adamastor, que tinha acabado de colocar quatro pedaços de picanha no prato da mesa, começou a discutir com João Ternura:
– Sai daqui, esquerdopata!
– Cala a boca, fascista miliciano!
João não conseguiu lembrar do que aconteceu depois. Bebendo café com a caneca escrito “papai, te amo”, que recebeu de presente da escola de Afonsinho, Ternura passou a folhear rapidamente o álbum. Em todas as páginas, fotos de seu tio Adamastor. Olhou pra cicatriz na palma da mão e resolveu ligar pra clínica:
– Quero desmarcar minha consulta.
– Inferno, não aguento mais essa tensão!
– Como é que é?
– Estamos fazendo esse trabalho sob ameaça. Você sabe que seu tio já mandou matar muita gente aqui na Zona Oeste, estamos com medo. Você não morre porque é da família, mas eu não quero morrer não.
– Tudo bem, eu vou.
– Vai dar certo, seu tio só quer que família faça as pazes no Natal desse ano. Até lá.
João Ternura olhou novamente para a foto abraçando Gabriel no álbum. Começou a olhar as publicações do irmão nas redes sociais. Pandemia do Novo Coronavírus. É só uma gripezinha. Vírus chinês. A vacina é Jesus. Farras em festas sem máscara. Amigos e familiares lamentando a morte de Gabriel.
João manda um áudio para Mariene:
– Você também vai pra essa terapia?
A resposta veio na hora:
– Sim. A verdade veio da pior forma, primo. Não vejo a hora do Natal chegar.
Bruno D’Almeida escreve textos para a coluna Fabuloso Cotidiano, as histórias de ficção de um mundo de verdade, no Mídia4P em parceria com a Carta Capital. Siga Bruno D’Almeida em seu canal no YouTube e no Instagram @dalmeidabruno. Para ler outros textos do autor,
