Quando o Ocidente morria de vontade de ir para a China. Por Pepe Escobar
Esqueçam o incessante martelar da Guerra Fria 2.0 contra a China. Esqueçam os bobalhões dos think tanks projetando seus desejos irrealistas no perpétuo “fim da ascensão da China”.
Esqueçam até mesmo as poucas mentes racionais de Bruxelas – sim, elas existem – dizendo que a Europa não quer a contenção da China, que ela quer engajamento, o que quer dizer negócios.
Embarquemos em uma viagem no tempo, retornando quase dois milênios, até um tempo em que o Império Romano se via fascinado pelas oportunidades de negócios oferecidas por aquelas “misteriosas” terras do Oriente.
Após a queda de Roma e da metade ocidental do Império no século V, Constantinopla – a segunda Roma – que era na verdade grega, transformou-se na encarnação máxima dos únicos verdadeiros “romanos”.
Mas, ao contrário dos gregos helenistas que se seguiram a Alexandre o Grande, que se sentiam tão fascinados pela Ásia, os romanos, do fim da República até a criação do Império, foram impedidos de seguir viagem por aquelas estradas por terem sempre sido bloqueados pelos partas: não esqueçamos da espetacular derrota romana em Carras, em 53 A.C.
Por mais de quatro séculos, na verdade, a limes oriental do Império manteve-se notavelmente estável, estendendo-se das montanhas do Leste da Armênia até o curso do Eufrates e os desertos da Síria-Mesopotâmia.
Então, tínhamos na verdade três limes naturais: montanha, rio e deserto.
A grande estratégia de Roma era não deixar que os partas – e, em seguida, os persas – dominassem por completo a Armênia, alcançassem o Mar Negro e ultrapassassem o Cáucaso para atingir as planícies russo-ucranianas que abriam caminho para a Europa.
Os persas, enquanto isso, limitavam-se a fortalecer as fronteiras do Eufrates, que só foram rompidas muitos séculos mais tarde pelos turcos seljuques, em fins do século XII, e pelos mongóis em inícios do século XIII.
Essa é uma fratura absolutamente crucial na história da Eurásia – porque essa fronteira, mais tarde perpetuada entre os impérios Otomano e Persa, ainda está bem viva nos dias de hoje, entre a Turquia e o Irã.
Esse fato explica, por exemplo, a alta tensão hoje verificada entre o Irã e o Azerbaijão, e que continuará a ser incessantemente explorada pelos atores do Dividir e Dominar.
Sigam as trilhas das caravanas
Algo de extraordinário aconteceu no ano de 166: mercadores romanos chegaram na corte do Imperador chinês Huan-ti, o 27º imperador da dinastia Han. Aprendemos na História da Han Tardia que um “enviado romano” – provavelmente mandado por ninguém menos que o Imperador Marco Aurélio – foi recebido por Huang Ti em Luoyang.
Esses romanos tomaram a rota que os chineses do século XXI rebatizariam de Rota da Seda Marítima – indo do Oceano Índico até o Mar do Sul da China seguindo até o Vietnã do Norte, continuando então por terra até Chang’an (hoje, Xian).
Os romanos vinham comprando seda da Ásia desde fins do século I A.C., das terras de “Seres”, sobre a qual um bom número de estudiosos discorda: alguns afirmam que se tratava da China, outros que era a Caxemira.
O comércio ao longo da Rota da Seda era, na verdade, conduzido por uma série de intermediários: ninguém percorria todo o caminho, do começo ao fim.
Mercadorias de luxo – seda, pérolas, pedras preciosas, pimenta – da China, Índia e Arábia só chegavam às mãos dos mercadores romanos em um dos lendários centros dos “corredores de comunicação” entre Oriente e Ocidente: Alexandria, Petra ou Palmira. Então, as mercadorias eram levadas a portos do Leste do Mediterrâneo, seguindo então até Roma.
O comércio de caravanas era controlado por nabateus, egípcios e sírios. Os mercadores “romanos” mais eficientes eram, na verdade, gregos do Leste do Mediterrâneo. O estudioso J.N. Robert mostrou que, desde Alexandre, o grego era uma espécie de língua universal (como o inglês é hoje) de Roma às montanhas do Pamir, do Egito aos reinos nascidos do Império Persa.
O que nos leva à personalidade literalmente revolucionária: Maes Titianus, um mercador greco-macedônio que vivia na Antióquia, na Síria romana, durante o século I.
Mesmo antes daquele enviado de Marco Aurélio à corte Han, Maes Titianus conseguiu fazer com que uma grande caravana cruzasse toda a Ásia Central e chegasse à terra de Seres.
A viagem foi épica – e durou mais de um ano. Eles partiram da Síria, cruzaram o Eufrates, seguiram até a Báctria (que tinha como capital a lendária Bactro) através do Khorasan, cruzaram as montanhas Tian Shan, chegaram ao Turquestão chinês e então atravessaram o corredor Gansu e o deserto de Gobi até chegar a Chang’an.
Desde o lendário Guia Geográfico de Claudio Ptolomeu, a caravana de Maes Titianus é reconhecida como a única fonte da Antiguidade Clássica a descrever por completo o principal corredor terrestre da Antiga Rota da Seda, que ia da Síria romana até a capital chinesa.
Uma super-rodovia Roma-Xian?
É importante observar que a Báctria, hoje situada ao norte do Afeganistão, àquela época era o limite oriental do mundo, segundo os romanos. Mas a Báctria era mais que isso: ela era a principal encruzilhada entre China, Índia, os partas, a Pérsia e o Império Romano.
As montanhas Pamir – o “teto do mundo “– e o deserto de Taklamakan (“você consegue entrar mas não vai conseguir sair”, reza do ditado uigur) durante séculos, foram as principais barreiras naturais no caminho entre o Ocidente e a China.
De modo que foi a geologia que manteve a China em esplêndido isolamento com relação ao Império Romano e ao Ocidente. Em termos militares, os romanos, e mais tarde os bizantinos, jamais conseguiram cruzar essa fronteira oriental que os separava dos persas. Portanto, eles nunca conseguiram levar adiante suas conquistas até a Ásia Central e a China, como Alexandre notoriamente tentou.
Mas os árabes, durante a expansão-relâmpago do Islã, conseguiram. Mas essa é uma outra – e longa – história.
A aventura da caravana de Maes Titianus ocorreu nada menos que um milênio antes das viagens de Marco Polo. Mas Polo contava com um aparelho de relações públicas muito mais sofisticado – e foi sua a narrativa que ficou gravada nos livros de história ocidentais.
Evocá-la hoje nos faz lembrar dos primeiríssimos passos das Antigas Rotas da Seda, e de como essa interconexão continua gravada no inconsciente coletivo de grandes partes da Eurásia. Os povos que vivem ao longo dessas rotas entendem instintivamente o porquê de a evolução de um corredor de comércio unindo China-Paquistão-Afeganistão-Irã-Leste do Mediterrâneo faz total sentido.
O primeiro-ministro caído de pára-quedas Mario “Goldman Sachs” Draghi pode insistir à vontade que a Itália é atlanticista, e pode caçoar o quanto quiser da Iniciativa Cinturão e Rota. Mas os mais perspicazes dentre os herdeiros do Império Romano veem que parcerias empresariais ao longo das Novas Rotas da Seda, hoje, fazem tanto sentido quanto nos tempos de Maes Titianus.
Pepe Escobar é jornalista e correspondente de várias publicações internacionais
Artigo publicado originalmente no Asia Times. Tradução de Patricia Zimbres, para o 247
https://www.brasil247.com/blog/quando-o-ocidente-morria-de-vontade-de-ir-para-a-china