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Dificuldades da terceira via. Por José de Souza Martins

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O povo não se encontra na polarização e no dualismo, mas naqueles que já conhece e nos quais se reconhece

 

Não é a primeira vez que setores da sociedade brasileira se mobilizam para encontrar uma alternativa política, uma terceira via, em face de desencanto político, de crise e impasse. O movimento de agora não é o primeiro, embora seja peculiar. A chance da terceira via parece estar em aceitar nova garimpagem eleitoral nos rejeitos da política.

Seus partidários querem encontrar uma saída política que não seja saída nem política. Foi lá atrás o caso da tentação por Sergio Moro. Não levam em conta que o brasileiro é politicamente conservador, mesmo quando necessita e quer mudanças. Mas o conservadorismo popular é muito peculiar e não é propriamente de direita.

No Império, a estrutura política do Estado brasileiro tinha no Poder Moderador do imperador o mecanismo de terceira via para contornar os impasses do bipartidarismo de liberais e conservadores.

O mecanismo funcionava bem. Como, dentre outros, ressaltou Euclides da Cunha, os liberais inovavam e os conservadores decidiam como a inovação seria posta em prática. O que nos fez um país de história politicamente lenta. Os impasses de agora vêm desse defeito estrutural do Estado brasileiro, amplificado pelo regime republicano de uma república de inspiração militar e sem povo.

A república de quartel colocou na função de poder moderador uma instituição destinada ao conflito e não à tolerância democrática.

Sempre que o Estado brasileiro se deixa conduzir por valores do mundo militar, opera como instituição total e fechada. Aí a terceira via surge como mera confiança no antagônico do antagônico. O povo não se encontra na polarização e no dualismo, mas naqueles que já conhece e nos quais se reconhece.

A terceira via, como saída para escapar desse peculiar autoritarismo, tem aqui existido como ruptura decorrente do desgaste e da obsolescência do sistema político, na figura gasta de suas lideranças, do sistema partidário e da ideologia de poder.

Na República, a vitória da terceira via não tem decorrido do surgimento de um líder messiânico salvador da pátria. As figuras messiânicas mais notórias foram Getúlio Vargas e Luiz Inácio Lula da Silva. Tornaram-se messiânicas não em consequência de uma busca, mas de uma revelação já no exercício do poder.

Mesmo quando quiseram demolir-lhes o carisma, foram reconduzidos ao poder ou nele confirmados. Getúlio foi quatro diferentes pessoas. A da Revolução de Outubro de 1930, a da Constituição de 1934, a do golpe de Estado de 1937, a da recondução ao poder, por eleição, em 1950. Mais do que ninguém, ele soube compreender e personificar os diferentes momentos do que em boa parte era sua própria obra. Nesse sentido, ele nunca foi um governante propriamente de direita. Suas políticas econômicas e sociais poderiam ser subscritas por governos democráticos e de esquerda.

Sua conciliação com os militares mais extremados e repressivos é que o definiu como de direita. Getúlio foi a personificação das contradições sociais e políticas do Brasil no poder. Ele se tornou sua própria alternativa, sua própria terceira via. Até no suicídio. Ao cometê-lo, retardou o golpe de Estado da direita que seria dado em 1954 e só o foi em 1964.

Lula, não obstante a durabilidade que decorre de seu prestígio popular, tem sido bem diferente. Ele sempre teve a humildade de reconhecer-se apenas como um líder sindical. Portanto, como alguém com a militância própria dos limites da porta de fábrica. O que não faz um presidente da República. No entanto, homem aberto ao diálogo com os iguais e, sobretudo, com os diferentes, excepcionalmente inteligente, ele aprendeu a ser presidente no próprio exercício da Presidência.

Como no caso de Getúlio, no dele também é o povo que avalia e decide revitalizar, reciclar e multiplicar as personalidades de uma só pessoa porque provada no poder. Lula teve isso na eleição e na reeleição e na eleição e reeleição de sua sucessora. E, de certo modo, também na disputa de 2018.

Seu candidato, Fernando Haddad, perdeu do eleito por 10 milhões de votos, embora 11 milhões de eleitores tenham votado em branco ou não votado. Tecnicamente, o eleito foi eleito pela minoria relativa. Portanto, Haddad perdeu eleitoralmente, mas ganhou politicamente. Ou seja, Lula e o petismo demonstraram uma durabilidade reveladora.

É nesse sentido que se pode pressupor que as tendências atuais do processo eleitoral indicam que ele é a terceira via no embate entre esquerda e direita. É claro que isso dependerá muito de sua capacidade de compreender as demandas sociais, especialmente as novas, e se ressocializar para ser o novo Lula. O que, de diferentes modos, ele já foi em diferentes ocasiões, antes e durante o poder.

*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de “Sociologia do desconhecimento ensaios sobre a incerteza do instante” (Editora Unesp, 2021).

Artigo publicado originalmente no Valor Econômico

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