Raças e Cotas por Contardo Calligaris
Pertencemos a
uma única espécie: a espécie humana.
Quanto a isso não há dúvida, visto que procriamos alegremente sem que as
diferenças étnicas ou raciais atrapalhem o bom funcionamento sexual e
reprodutivo. Mas só 250 anos atrás, na América do Norte e na França, foi
proclamado o princípio de que, por pertencermos à mesma espécie, temos todos os
mesmos direitos, independentemente de etnia, cultura, religião, gênero, berço e
cor (da pele, do cabelo ou dos olhos).
Desde então, tal princípio vem se afirmando, aos trancos e, sobretudo, aos barrancos,
por várias razões. 1) Há etnias e culturas que não topam aquela ideia
proclamada 250 anos atrás.
2) Não conseguimos decidir se nossa igualdade de direito deve implicar ou não
uma igualdade de fato. Depois de algumas tentativas desastradas, parece que
concluímos que o importante é que todos tenhamos ao menos oportunidades
parecidas no começo da vida. Estamos longe disso.
3) Mesmo acreditando na unidade da espécie e na igualdade dos direitos,
adoramos pertencer a uma turma e continuamos enxergando um mundo dividido em
nações, etnias, raças, classes, torcidas etc. Claro, prezamos nossa
singularidade e, por isso, queremos ser contados um a um, como indivíduos, cada
um diferente e único dentro da espécie comum. Mas também gostamos de
privilégios, e os privilégios são mais "agradáveis" quando são
negados a um grupo de excluídos: sala VIP só tem "graça" se os outros
esperam no saguão do aeroporto. Em suma, no mínimo, a vontade de sermos
singulares nos induz a criar grupos de discriminados, "diferentes" de
nós.
4) As vítimas dessa discriminação, na hora de invocar o princípio da igualdade
de todos para obterem os mesmos direitos dos demais, são obrigadas a se
constituírem como grupo. Sem isso, sua reivindicação não teria chance alguma: o
protesto de um negro discriminado será sem efeito se não existir algum
"movimento negro".
Em tese, os grupos de vítimas da discriminação deveriam ser fundados em
"identidades de defesa", ou seja, identidades que surgem provisoriamente,
de maneira reativa. Por exemplo, "os negros" existem como grupo, aos
olhos dos racistas, para serem discriminados; ora, a luta contra essa
discriminação exige uma identidade positiva, de modo que os negros possam
existir como grupo na hora de se opor à sua discriminação. No caso, eles
afirmarão e valorizarão uma improvável ascendência racial comum. Problema: ao
defender-se, eles darão crédito à mesma diferença inventada pelos racistas a
fim de discriminá-los.
O perigo é que essas identidades, adotadas para lutar contra a discriminação e
permitir, enfim, uma sociedade de indivíduos iguais, acabem consolidando as
próprias diferenças que tratam de abolir. Por exemplo, uma política de cotas
reservadas a negros e pardos (na universidade, no emprego público e mesmo no
setor privado) é uma maneira de se opor à discriminação, mas, para funcionar,
ela exige que a gente acredite nas diferenças raciais e as estabeleça como
parte da identidade do cidadão -que é exatamente a situação com a qual o racismo
sonha desde sempre.
Esse argumento é crucial no livro de Demétrio Magnoli, "Uma Gota de
Sangue" (ed. Contexto), que é, ao mesmo tempo, uma excelente história e
apresentação do racismo no mundo moderno e uma crítica das políticas de cotas
por elas necessariamente confirmarem a existência de diferenças raciais que não
têm realidade biológica e cujo fundamento histórico é o próprio racismo.
Isso, logo no Brasil, onde a mistura das cores deixaria esperar um enterro mais
rápido da categoria de raça.
Compartilho com Magnoli o sonho de uma sociedade em que a cor da pele seja
indiferente. Mas minha avaliação das políticas de cotas é "matizada".
Quando cheguei nos EUA, em 94, eu pensava como Magnoli, ou seja, previa que o
sistema de cotas, instituído para "compensar" os efeitos da
discriminação, dividiria o país, levando-o de volta para o século 19. Não foi o
que aconteceu. Aos poucos, a presença de cidadãos de todas as cores na maioria
das corporações (da polícia urbana ao corpo docente das universidades) se transformou
num duplo valor compartilhado por todos ou quase: um valor estético (a
diversidade é bonita) e um valor produtivo (a diversidade é funcional).
Até que um dia pareceu lógico, num país cujo sul inteiro foi racista e
segregado, que um negro pudesse ser presidente.
Artigo publicado orininalamente no Jornal A Folha de São Paulo