Respirar é possível por BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS *
Para governos "desalinhados" do continente e para as classes sociais
que os levaram ao poder, as eleições no Brasil foram um sinal de esperança
As eleições no Brasil tiveram uma importância internacional inusitada. As
razões diferem consoante a perspectiva geopolítica que se adote.
Vistas da
Europa, as eleições tiveram significado especial para os partidos de esquerda.
A Europa vive uma grave crise, que ameaça liquidar o núcleo duro da sua
identidade: o modelo social europeu e a social-democracia. Apesar de estarmos
diante de realidades sociológicas distintas, o Brasil ergueu nos últimos oito
anos a bandeira da social-democracia e reduziu significativamente a pobreza.
Fê-lo reivindicando a especificidade do seu modelo, mas fundando-o na mesma
ideia básica de combinar aumentos de produtividade econômica com aumentos de
proteção social.
Para os partidos que, na Europa, lutam pela reforma do modelo
social, mas não por seu abandono, as eleições no Brasil vieram trazer um pouco
mais de ar para respirar. No continente americano, as eleições no Brasil
tiveram uma relevância sem precedentes. Duas perspectivas opostas se
confrontaram. Para o governo dos EUA, o Brasil de Lula foi um parceiro
relutante, desconcertante e, em última análise, não fiável. Combinou uma
política econômica aceitável (ainda que criticável por não ter continuado o
processo das privatizações) com uma política externa hostil.
Para os EUA, é
hostil toda política externa que não se alinhe integralmente com as decisões de
Washington. Tudo começou logo no início do primeiro mandato de Lula, quando
este decidiu fornecer meio milhão de barris de petróleo à Venezuela de Hugo
Chávez, que nesse momento enfrentava uma greve do setor petroleiro, depois de
ter sobrevivido a um golpe em que os EUA estiveram envolvidos. Tal ato
significou um tropeço enorme na política americana de isolar o governo Chávez.
Os anos seguintes vieram confirmar a pulsão autonomista do governo Lula. O
Brasil manifestou-se veementemente contra o bloqueio a Cuba; criou relações de
confiança com governos eleitos, mas considerados hostis -Bolívia e Equador-, e
defendeu-os de tentativas de golpes da direita, em 2008 e em 2010. O país
também promoveu formas de integração regional, tanto no plano econômico como no
político e militar, à revelia dos EUA, e, ousadia das ousadias, procurou
relacionamento independente com o governo "terrorista" do Irã.
Na
década passada, a guerra no Oriente Médio fez com que os EUA
"abandonassem" a América Latina. Estão hoje de volta, e as formas de
intervenção são mais diversificadas do que antes. Dão mais importância ao
financiamento de organizações sociais, ambientais e religiosas com agendas que
as afastem dos governos hostis a derrotar, como acaba de ser documentado nos
casos da Bolívia e do Equador. O objetivo é sempre o mesmo: promover governos
totalmente alinhados. E as recompensas pelo alinhamento total são hoje maiores
que antes.
A obsessão de Serra com o narcotráfico na Bolívia (um ator
secundaríssimo) era o sinal do desejo de alinhamento. A visita de Hillary
Clinton e a confirmação, pouco antes das eleições, de um embaixador duro
("falcão"), Thomas Shannon, são sinais evidentes da estratégia
americana: um Brasil alinhado com Washington provocaria, como efeito dominó, a
queda dos outros governos não alinhados do subcontinente. O projeto se mantém,
mas, por agora, ficou adiado. A outra perspectiva sobre as eleições foi o
reverso da anterior. Para os governos "desalinhados" do continente e
para as classes e movimentos sociais que os levaram democraticamente ao poder,
as eleições brasileiras foram um sinal de esperança: há espaço para política
regional com algum grau de autonomia e para um novo tipo de nacionalismo, que
aposta em mais redistribuição da riqueza coletiva.
BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS, 69, sociólogo português, é professor catedrático da
Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal). É autor, entre
outros livros, de "Para uma Revolução Democrática da Justiça"
(Cortez, 2007).