Para além do niilismo por Sérgio São Bernardo
Acabo
de ler o livro Nilismo e Negritude do Camaronês Celestin Mongá. Acho
uma boa leitura para os nossos continuados dias de diáspora e busca de
sentido identitário e emancipatório. Um debate que aparecerá num futuro
próximo face aos novos caminhos trilhados por nós mesmos nos últimos
anos.
Mongá
traça um relato muito singular e amplo de sua visão sobre a África
moderna. Uma desmontagem propositada das perspectivas essencialistas,
culturalistas e desenvolvimentistas que povoam a África e a diáspora nas
últimas décadas. Citando Senghor, Mongá faz seu acerto de contas sobre a
sua África: ousa a refletir sobre uma herança frágil e cética fundada
na afirmação da negritude e na negação ao colonialismo; admite precisar
entender este momento pós-revolucionario e buscar o modo como os de sua
geração devem seguir e conquistar a vida digna a partir desse lugar. Um
lugar amplo e diverso que não sintetiza a África unida que pensamos
existir; de uma superação de um nilismo ascético desumano e festivo quem
tem nos proporcionado em alguns momentos traços de quietude e
conformação.
Em
Nilismo e Negritude, Mongá fala com destreza e abrangência
filo-antropológica de uma África contemporânea por meio de uma viagem ao
cotidiano. Divaga sobre a auto-estima, as heranças coloniais, a
culinária, a ética, a religião e a sexualidade. E ainda comenta
acidamente sobre as responsabilidades dos governos despóticos e
programas autoritários que têm perpetuado altos índices de
miserabilidade na África pós revolucionária sustentada por uma elite
negra, esclarecida e rica. Entretanto, o autor aprende com suas próprias
contradições e acaba por aceitar de modo paradoxal os ensinamentos
sobre a economia do casamento, do uso do corpo e da morte como
substratos legítimos de uma África reinventada pelos africanos da
atualidade.
Aqui
nos trópicos, muita coisa tem acontecido e revelado consistências e
fragilidades, aberturas e fechamentos. A história de luta e resistência é
plasmada em recorrentes abandonos da identidade e da incapacidade de
homogeneização ideológica. Algo que podemos chamar de um nilismo negro
brasileiro. Cada um traça, em suas individualizadas dezenas de partidos,
grupos e subtendências, a osmótica partilha do programa salvacionista e
os transformam em poderes os mais distintos e valorativos.
Ninguém
está errado. Até porque, parte do que fizemos na episteme da luta
emancipatória no Brasil tem nos trazido mais vitórias do que derrotas.
Então, o caminho histórico não é de todo desprezível. Temos um debate
que precisa ser refeito permanentemente para além de onde nos
encontramos agora, num fosso intranqüilo em face dos discursos da
identidade nacional, da miscigenação e da cordialidade corroborado por
altos índices de pobreza e violência. Parece que estamos lá adiante,
entretanto, nosso irmão está lá atrás e não sabemos se o esperamos ou
continuamos avançando.
Na
diáspora nacionalista afro-brasileira todos ostentam gestos e valores
pensando estar dando mais um passo para algo que seja grandioso e que
servirá a todos. Outros simulam jogos e negociam interesses, os mais
plurais, aliados às identidades não necessariamente sócio-raciais e/ou
emancipatórias. Tenho ouvido e presenciado muitas opiniões que se
confrontam na tática e, depois, se dialetizam na estratégia e vice
versa. Existe uma persistência romântica de que tudo que fazemos deva
ser homogêneo e universalista. Do mesmo modo, a nossa herança metafísica
e imanente agora tem nos dado, provisoriamente, um ar de resistência e
protagonismo político frente a um Estado que teima em não saber a
distinção preconizada por Chateau Mouffe de que uma coisa é o diálogo
entre o Estado e a Igreja, outra é o diálogo entre política e religião.
Esta quadratura dicotômica tem sido o novo cenário da luta política na
América Ibérica e nós estamos usando.
Mongá
fala, citando Mudimbe, que a invenção da África forçou um diálogo
inexistente entre um essencialismo identitário e um universalismo
racionalista. Isso o levou a admitir que o futuro planetário, o papel do
continente africano e sua diáspora ainda estão por ser empreendidos.
Uma parte do mundo emergente está mesmo usando este jargão e revisitando
a África do futuro. Uma odisséia afropolitana que ainda não chegou.
Hall insiste na idéia de que o etnocentrismo nos coloca no fosso da
afirmação fundamentalista da diferença, naturalizando-a. Como se
exstivessémos esperando um projeto em andamento, algo próximo da
inexorável historicidade redentora em nossos olhos de ver o passado. E
ao citar Octávio Paz, traz um "senão" de que o que nos distingue não é a
originalidade, e sim a originalidade de nossas criações.
O
nilismo negro reina na diáspora, numa África reinventada e real. Algo
do que Mongá reflete está acontecendo aqui conosco. Diversas modalidades
de representações e manifestações têm estimulado a construção de vagões
que trafegam em trilhos ora de um essencialismo pragmático, ora de um
culturalismo estatizante. Todavia, paradoxalmente, temos ocupado mais
espaços públicos e privados. Certos arranjos existenciais e mecanismos
de defesa – ou seja, uma estratégia Jeje/Banto/Nagô que nos mantém
preservados – dialogam com uma dose de afirmação identitária para além
do sagrado e do profano que nos semantizou. Uma parafernália
simbólico/material que nos fez alargar as opções táticas e hoje, mesmo
que queiramos, não saberemos sair disso sem dissensões. Entretanto, o
mundo nos olha com olhos de quem soube sair do pior e escolheu modos
singulares de continuarmos vivos.
Temos
um dilema ético político: como falar para todos os negros sendo seus
representantes? E não sendo seus representantes, quais acordos possíveis
para representar a todos ou a sua maioria? E representando a poucos,
como querer um projeto para muitos? Qual o papel dos negros que estão no
governo ou que são de partido político? Qual o papel dos que estão
fora, ou são de ONGs, ou outras organizações independentes? Existe uma
fenda gramsciana que pode nos dar uma saída para um projeto que integre
ação política por dentro e uma ação política por fora? Qual o papel
político das religiões teogônicas afro-brasileiras? Qual o papel do
marxismo na luta negra brasileira? Qual o sentido estratégico da lutas
dos quilombolas, empresários e empreendedores negros, mulheres e
juventude no Brasil de hoje. Estas são as nossas perguntas.
No
entanto, o nilismo negro tem feito muitos estragos e êxitos, e à
revelia da tradição etnocêntrica que nos orienta, muitos estão ocupando
espaços na sociedade e estão assumindo seu niilismo negro nas faculdades
nas empresas, no sexo, nas periferias, no governo, na religião, na
cultura e em dezenas de outras atividades da vida pública e privada.
Decidindo ao seu gosto, a cara da esfera publica e seus representantes
no cenário político. Ainda estamos por saber qual será o nosso caminho:
se um socialismo negro, uma sociedade multicultural de caráter
maximalista ou uma sociedade liberal de convivência integracionista.
Creio
que a nossa luta política ainda seja a de superar o nilismo e buscar
referências, as mais grandiosas e eficazes que possam nos levar para
horizontes e lugares ( não ouso dar nomes ) de justiça, democracia,
liberdade e alcance equitativos de comida, dinheiro, solidariedade e
felicidade. Busquemos, então, a originalidade em nossas criações.
Mongá, Celestin, Nilismo e Negritude, Martins Fontes, 2010.