O Carnaval me chama por Roberto Midlej
Poucos assuntos tiram a serenidade de Moraes Moreira, mas um deles é o
Carnaval da Bahia: "Muitos falam sobre minha ausência no Estado. Mas garanto
que, se não tenho participado da festa, não é por falta de vontade.
Já disse
que, se for para sair no pior horário, no pior trio elétrico e se não tiver o
tratamento que acho que mereço, eu prefiro não ir", afirma Moraes, que lança em
Salvador, quarta-feira, no Tom do Saber, o livro A história dos Novos Baianos e
outros versos.
"O Carnaval do Brasil me chama! Eu não vou ficar bajulando
governador, prefeito, nem ninguém.
Eu quero ir porque mereço, porque prestei
um trabalho ao Carnaval baiano, um trabalho grande. Só quando eu tiver essas
condições todas de dignidade e respeito, eu voltarei", afirma.
Ele se
manifesta contra a mesmice da festa baiana: "Eu já havia cantado essa bola nos
anos 80, sabia que ia acontecer esse impasse a que o Carnaval chegaria.
Fui o
único que se manifestou contra isso que está aí, mas sofri retaliações terríveis
na conjuntura anterior, que todos sabem qual é!" Mas não há mágoas: "Tenho
saudades, mas não tô pedindo pra voltar, estou muito bem. Tenho agenda cheia,
sou bem pago, bem recebido. Toco em Natal, Fortaleza, Pernambuco, em tudo que é
lugar!".
Enquanto isso, os foliões, aqui, vão se contentando com pérolas do
Bonde do Maluco, como "Não vale mais chorar por ele/ Ele jamais te amou…" O
LIVRO – "Do interior da Bahia / Pra capital Salvador / Em busca de seus destinos
/ Chegavam lá todo dia / Querendo virar "Dotô" / Meninos e mais meninos…" Para
o bem da música, Moraes Moreira não seguiu o destino desses "meninos" lembrados
por ele nos versos iniciais de A história dos Novos Baianos e outros versos,
livro em que o compositor conta, em forma de cordel, a saga de um dos maiores
grupos da história da música brasileira.
"São 96 versos que obedecem aos
rigores do cordel. Como Galvão [ex-integrante do grupo] já havia contado a
versão dele em prosa [no livro Anos 70 e Novos B aianos, Ed. 34], resolvi partir
para outro formato. Além disso, a história do grupo tem verdade, tem vida, tem
informação, e isso se encaixa perfeitamente no cordel", justifica o compositor.
O COMEÇO – Não fosse Tom Zé, possivelmente o Brasil não teria o
privilégio de ser o berço de pérolas como Preta Pretinha, Acabou Chorare e A
Menina Dança.
Foi o baiano de Irará que promoveu o primeiro encontro entre
Moraes e Galvão: "Entrei num seminário de música e lá tive algumas aulas de
violão com Tom Zé.
Mostrei algumas músicas minhas a ele, que gostou e depois
me apresentou a Galvão. Começamos a parceria e, em 15 dias, já tínhamos seis ou
sete composições prontas", recorda-se.
Aos poucos, os Novos Baianos foram
tomando forma, com a entrada de novos integrantes, como Paulinho Boca de Cantor,
Pepeu e Baby, que se apresentaram com o grupo no histórico show Desembarque dos
Bichos, narrado no livro. Moraes lembra com bom-humor: "Era um show louco, gente
em trapézio, voando sobre a platéia, iluminação psicodélica.
Uma atriz na
Bahia exclamou: ‘Se isso for arte, eu me suicido’. Era uma loucura!".
RIO
DE JANEIRO – Loucura ou não, o saldo foi positivo: a banda decidiu seguir
carreira profissional e partiu para o Rio, já que a Bahia não oferecia condições
de profissionalização. Fechou contrato com a RGE, através de João Araújo, pai de
Cazuza. Daí, surgiu o primeiro álbum, Ferro na B oneca, gravado em São Paulo.
Segundo Moraes, a metrópole paulista não era o sonho dos Baianos: "Nós
queríamos ir para o Rio, que era a cidade da onda, onde estavam a
intelectualidade e a juventude carioca. Era uma cidade mais libertária, que
tinha tudo a ver com a gente", diz "Resolvemos então alugar um apartamento no
bairro de Botafogo.
Decidimos que, para ser um novo baiano, não bastava
tocar junto. Era preciso morar junto, numa comunidade".
Como outros artistas
de sua geração, Moraes não poupa elogios ao cantor baiano João Gilberto: "Ele é
o guru do grupo, ele é pai do disco Acabou Chorare. É o grande produtor
espiritual do álbum, é o pai dessa criança."
Acabou Chorare consagrou o grupo, mas a grana era pouca
Depois de Acabou Chorare, a popularidade do grupo aumentou muito. Mas a
grana continuava curta, lembra Moraes: "Nosso dinheiro não tinha dono. Eu e
Galvão éramos os que mais ganhavam por causa dos direitos autorais, mas nós não
pegávamos em dinheiro".
Veio a mudança para o Cantinho do Vovô, uma
propriedade rural na Zona Oeste do Rio de Janeiro, onde se consolidou a
comunidade.
Nessa época surgiram os famosos babas disputados por Pepeu, Dadi,
Moraes, Paulinho e com a participação de craques como Nei Conceição, Afonsinho e
até Brito, zagueiro da mítica seleção tricampeã.
DIFICULDADES – Depois,
Moraes ainda lançaria, com o grupo, mais dois discos, Novos Baianos F. C. e
Novos Baianos (que ficou conhecido como Alunte ). Mas, com nascimento dos filhos
de alguns integrantes, as dificuldades aumentaram.
"A gente não tinha
uma situação financeira regular, éramos desorganizados. Às vezes, não tinha
comida e a gente se contentava em chupar laranja. Enquanto as crianças mamavam,
tava tudo beleza. Mas depois cresciam e precisavam de outros alimentos.
E os malucos, de larica, tomavam o leite das crianças! Aí a barra pesou,
veio o desgaste e, em 75, tive que sair, com dor e pena", afirma
Moraes.
SOLO – Os primeiros anos da carreirasolo foram difíceis: "O
primeiro disco, Moraes Moreira, de 75, não repercutiu muito e passei
dificuldades com a família. Não tinha como pagar aluguel e cheguei a ser
despejado".
O sucesso viria no segundo álbum.
Ali estava a música que
faria decolar a carreira-solo e ele se tornaria um ícone dos carnavais: Pombo
Correio. "Aí, as coisas melhoraram, vieram muitos shows.
Me voltei para o meu
nome. Apenas eventualmente tocava Preta Pretinha ou outras músicas dos Novos
Baianos. E, depois disso, foi um sucesso atrás do outro." Não foram poucos hits,
como compositor ou cantor: Chão da Praça (com Fausto Nilo), Chame Gente (com
Armandinho), Vassourinha Elétrica, todos clássicos absolutos dos anos 70/80.
A força de Moraes como compositor será lembrada no dia 4 de março, na 17ª
edição do Troféu Dodô & Osmar, realizado pelo Grupo A TARDE. Ele e mais 27
compositores baianos serão os homenageados da noite. "Estou chegando a 500
composições gravadas. Não acho que o compositor baiano seja negligenciado, mas
todo compositor deveria ter direito de gravar sua própria música e, mesmo que
não seja um grande intérprete, sempre é bom ouvir a versão do criador." JOÃO –
Foi no apartamento de Botafogo que os Novos Baianos, quando chegaram ao Rio de
Janeiro, receberam um convidado que mudaria a história do grupo: João Gilberto.
Procurado por Galvão, João foi visitar a trupe.
Moraes recorda a visita com
detalhes: "Na primeira vez que ele me pediu pra tocar, eu tremia, fiquei
nervoso. Ele gostou, mas fez uma observação importante: ‘Está tudo bonito, mas
vocês precisam olhar pra dentro de vocês mesmos’. Ele queria dizer que a gente
devia prestar mais atenção ao Brasil. O nosso som era meio roqueiro,
influenciado por Janis Joplin, Jimi Hendrix e bandas de fora do País. Aí, ele
começou, naquele dia, a mostrar coisas de Noel Rosa e Herivelto Martins.
Aquilo despertou a brasilidade na gente. E, finalmente, quando um dia ele
soltou os primeiros versos de Brasil Pandeiro, de Assis Valente, nós entendemos
o recado.
Então, começamos a colocar cavaquinho, bandolim, pandeiro e outros
elementos nos Novos Baianos".
As condições técnicas de gravação não eram as
melhores, mas a sintonia entre os integrantes era tão grande que o resultado foi
o álbum histórico, que se tornaria um dos mais importantes da MPB. Tanto é que,
há poucos meses, a edição tupiniquim da revista Rolling Stone elegeu Acabou
Chorare como o maior disco brasileiro de todos os tempos.