A proibição da Marcha da Maconha e liberdade de expressão por Marco Magri
As seguidas proibições da Marcha da Maconha é mais um entre os episódios que deixam transparecer um lado nefasto da realidade brasileira: o conservadorismo do sistema judiciário.
Sob as mais infundadas
acusações – "defendem o uso indiscriminado de drogas"; "querem acabar com a
família"; "são traficantes" – alguns Estados do País interpretam a mesma lei
que permite aos seguidores de Bolsonaro se manifestarem, com proteção policial,
de maneira invertida para impedir pessoas de expressarem sua opinião sobre a atual
lei de drogas proibicionista.
Na Alemanha da República de Weimar, após a dissolução da monarquia e com o
advento de um inicio de país republicano, Walter Benjamin ressaltou como
fundamental a presença de um judiciário reacionário – que tinha permanecido
intacto dos tempos do Kaiser e guardava um ranço antipopular muito forte – como
fator de auxílio da ascensão do nazismo. Ficava evidente a forma na qual
operava seletivamente essa justiça, que condenou Hitler a apenas um ano de
cadeia depois de sua primeira tentativa de agitação, enquanto membros de
organizações de esquerda amargavam longos períodos no cárcere. E foi justamente
logo após ser liberado que Hitler conseguiu começar sua campanha que terminou
no genocídio de milhões.
No Brasil, somos, igual e perigosamente, incapazes de enfrentar os fantasmas e
herença das masmorras das ditaduras. Isto fica claro na recusa do STF em abrir
processos para punir torturadores, que cometiam crimes de lesa humanidade e
continuam impunes, caminhando pelas ruas. E não são apenas as pessoas físicas
que cometeram tais crimes que têm livre circulação – o que é mais preocupante
são suas ideias, que permanecem e dão margem aos mais terríveis arbítrios. No
Brasil, os casos de tortura aumentaram consideravelmente após o fim da
ditadura, desta vez direcionada principalmente contra a população pobre. E
também temos um sistema judiciário extremamente leniente com massacres contra
os trabalhadores pobres, como vemos no caso do Eldorado de Carajás (impune),
Massacre do Carandiru (impune), crimes de maio de 2006 (impune).
No caso das drogas, a justiça é especialmente seletiva quando se trata de
punir. Se um branco é pego com 10 gramas é tratado como usuário, assina, paga
propina. Um negro? Traficante. E as drogas são a justificativa cotidiana para
violações de direitos humanos e violência policial, ou seja, para garantir o
estado de sítio, para garantir a dominação, a apatia e a falta de participação,
o isolamento e tudo mais que disso decorre.
E é do conservadorismo do judiciário que vemos atentados violentos contra a
liberdade de expressão no seu sentido mais amplo. No sentindo que foi mais
reprimido ao longo da história brasileira, da liberdade de se reunir, da
liberdade de lutar por mudanças. Apologia ao crime, acusam. Só se for apologia
ao crime de pensar, de debater, de recusar aceitar uma lei que é extremamente
danosa e irracional. Toda apologia questionadora é contra a ordem, portanto,
uma apologia perigosa, tal qual foi a apologia da abolição da escravidão, o
negócio mais lucrativo que havia sob o sol, perigosa como a defesa do sufrágio
universal, do voto feminino e de tantas outras lutas democráticas, libertárias.
Era apologia ao crime defender o fim da própria ditadura.
Vivemos essa repressão, que se reflete em atraso e incapacidade de superar
erros e avançar para um outro tipo de sociedade, capaz de fazer os debates de
forma aberta. O exemplo da proibição da Marcha da Maconha em alguns estados nos
mostra como nosso poder jurídico, invariavelmente apoiado pelo executivo (a
prefeitura de Atiabaia se pronunciou, em nota pública, contra a Marcha) e pelo
legislativo (a proibição da Marcha em Curitiba foi feita a pedido de um
deputado evangélico do PSC), não tem a menor vocação para a democracia, está
parado em algum lugar entre 1964 e 1985.
Sustentados por argumentos jurídicos sem qualquer fundamento, buscam tolher o
livre debate na sociedade. E eles sabem muito bem que não têm argumentos, por
isso, procedem de forma astuta ao entrarem com o pedido de proibição sempre às
vésperas do evento, de modo que não haja tempo hábil para uma resposta legal.
Passada a Marcha, o assunto "prescreve".
Espera-se para as próximas semanas o julgamento no Supremo Tribunal Federal
(STF) de ação da Procuradoria Geral da República contra a proibição das marchas
da maconha. Não se pode esperar outra decisão do Supremo que não salvaguardar o
livre direito à expressão e manifestação por parte dos membros da Marcha, que
querem simplesmente poder discutir as políticas de drogas brasileiras de forma
aberta e séria. Sem mordaça.
Marco Magri é cientista social, mestrando em Ciências
Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e integra o Coletivo
DAR (Desentorpecendo a Razão) e a Marcha da Maconha SP