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Teixeira Gomes e o envelhecimento. Por Miguel Urbano Rodrigues

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A leitura da biografia de Teixeira Gomes, presidente de Portugal de 1923 a 1925, leva o jornalista, escritor e dirigente comunista português Miguel Urbano Rodrigues a refletir sobre a vida, o amor e a velhice.

“E a parte mais dolorosa da senilidade consiste em assistir, consciente mas impotente, à nossa própria ruína mental! (…) a vista já muito mal me serve e a minha memória é um vidro transparente onde logo se apaga tudo quanto nela se reflete”. São palavras de Teixeira Gomes, anotadas em 1938 no quarto do hotel em Bougie onde faleceu em 1941. Tinha então 77 anos e via-se como ruína física e mental do homem que fora.

Medito nelas ao ler a Biografia do escritor e do homem, de José Alberto Quaresma (João Alberto Quaresma, Biografia, Manuel Teixeira Gomes, Imprensa Nacional Casa da Moeda -Museu da Presidência da República, 632 páginas, Lisboa 2016.) Sinto-me um privilegiado porque caminho para os 92 anos e fui muito menos golpeado no processo de envelhecimento do que Teixeira Gomes. Sei que nas últimas décadas os progressos da medicina prolongaram a esperança média de vida. Mas não explicam a minha longevidade.

Teixeira Gomes praticou vários desportos e fazia diariamente ginástica respiratória; eu não. Em meu desfavor registo também que ao longo da vida fui atingido por doenças graves que, segundo os médicos, a deveriam ter encurtado. Cito entre outras: tifo, fraturas de braço, pulsos e rótula, enfizema, tromboflebite, poliradiculoneurite, esquistossomíase, malária aneurisma da aorta abdominal, cataratas, descolamento da retina. A todas superei, recuperando uma saúde estável. Repito, fui um privilegiado.

Li com absorvente interesse o livro de Quaresma. Desde menino, episódios da vida de Teixeira Gomes eram tema frequente de conversas familiares. Meu pai, como secretario de Afonso Costa e deputado, integrara a missão portuguesa que discutira em Londres com o governo britânico durante a primeira guerra mundial questões relacionadas com a participação de Portugal no conflito. Teixeira Gomes era na época o representante ali do nosso pais como ministro plenipotenciário. Esses dias foram fonte da futura amizade que ligou meu pai ao diplomata que admirava como escritor. Anos depois, quando era diretor do diário Mundo, apoiou a sua candidatura à Presidência da Republica. A intimidade aprofundou-se e meus pais eram com frequência convidados a jantar em Belém.

A amizade tinha raízes e resistiu ao exilio do ex-presidente em Bougie, na Argélia. Tive nas mãos quando adolescente cartas que trocavam. Em l946, cinco anos apos a morte do grande português, meu pai publicou um livro, recordando facetas pouco conhecidas da sua personalidade: A vida romanesca de Teixeira Gomes. Registo ainda que as teses de licenciatura e doutoramento de meu irmão Urbano Tavares Rodrigues incidiram ambas sobre Teixeira Gomes.

Sobre o amor

Manuel Teixeira Gomes amou muitas mulheres, com níveis diferentes de intensidade, incluindo Belmira, a mãe de suas filhas, da qual se distanciou afetivamente desde o início da primeira missão diplomática. Ao renunciar à Presidência em Dezembro de 1925, o sexo perdeu rapidamente importância para ele. Tinha 67 anos, mas sentia muito o peso da idade e na sua correspondência torrencial e nos seus livros posteriores aborda com frequência essa temática. É desde a juventude ateu convicto; não teme a morte, mas ela não está ausente no seu pensamento.

Eu separei-me de minha segunda mulher aos 70 anos. Decidi fixar-me em Cuba e por ali fiquei oito anos. Cheguei no auge do Período Especial e participei com alegria na defesa daquela Revolução, para mim na época diferente de qualquer outra. Esse entusiasmo cedeu lugar a um sentimento de frustração ao aperceber-me de que a Ilha de Fidel, em lenta guinada à direita, se afastava do projeto revolucionário que havia empolgado milhões de comunistas em todo o mundo.

Nesses anos cubanos amei com frenesi juvenil uma mulher. O que me enfeitiçou nela inicialmente foi o seu talento de intelectual de prestígio mundial. Mas, transcorrido pouco mais de um ano, o encantamento evoluiu para a desilusão. Pus termo a essa relação tempestuosa. Era já intransponível o fosso ideológico que nos separava, mas senti muito a falta da sua sensualidade explosiva. Sofri.

Tinha 78 anos e decidi regressar a Portugal, para envelhecer com serenidade no meu Alentejo. Mas a certeza da proximidade relativa da morte não pesava no meu quotidiano. Acumulava projetos que, por excessivos, não poderia concretizar.

Vivia no presente, com os olhos no futuro. Caminhava quilômetros todas as manhãs, imaginando trechos de um livro de contos que preparava. Em Havana escrevera um ensaio sobre Historia da Ásia Central, um romance e dois tomos de memórias.

Inesperadamente, conheci a filha de um casal de camaradas. Ela tinha apenas 38 anos; eu ultrapassara 79. O amor era para mim então memória. Mas tornou-se absurdamente presente. Ana Catarina fez-me conhecer o amor em todas as suas vertentes, em patamares que tinha por inatingíveis para mim. Somente apos uma intervenção cirúrgica em 2011, aos 86 anos, a consciência plena do envelhecimento entrou em mim. Mas a galope. Percebi que o futuro desaparecera do horizonte. Mergulhei de repente no passado. Caty continua a amar-me. Fui, repito, um privilegiado.

Vila Nova de Gaia, 2017

Artigo publicado originalmente em http://www.nocaute.blog.br/mundo/teixeira-gomes-e-o-envelhecimento.html

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