Aldeia Nagô
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Saques, arrastões e “ressentiment” por CONTARDO CALLIGARIS

4 - 5 minutos de leituraModo Leitura

Na nossa época, futilidades são, no mínimo, tão relevantes e necessárias quanto era o pão em 1789. A turba que afugentou Luís 16 e Maria Antonieta de Versailles, em 1789, pedia pão porque estava com fome.


A turba de Londres em 2011 pedia bugiganga eletrônica e roupa de marca
-artigos que, aos olhos de muitos, parecem não ser de primeira
necessidade. Ou seja, aparentemente, a violência da turba de 1789 talvez
fosse justificada, mas a de 2011 não é.

No domingo passado, na Folha, Eliane Trindade escreveu sobre
meninas de rua que praticam arrastões em São Paulo. Elas procuram
produtos para alisar o cabelo, celulares cor-de-rosa e lentes de contato
verdes para mudar a cor dos olhos.

Alguém estranha que elas não prefiram uma comida boa ou uma roupa
quente? Como disse uma menina, o que elas querem é ser bonitas (claro,
nos moldes da cultura de massa). Será que, como a turba de Londres, elas
seriam culpadas por não desejarem bens "de primeira necessidade"?

Não penso assim -e não é por indulgência com assaltos e arrastões. É
porque, na nossa época, as "futilidades" são, no mínimo, tão relevantes e
tão necessárias quanto era o pão em 1789. Explico.

Em 1789, as diferenças eram de casta. Salvo filósofos perdidos na turba,
as pessoas reunidas no protesto queriam manifestar sua indignação e
satisfazer sua fome, mas não pensavam em mudar a ordem social e subir na
vida. Na época, aliás, ninguém subia para lugar nenhum, as pessoas
ocupavam o lugar que lhes cabia por nascimento.

À força de indignação e raiva, as coisas foram longe, até que ruiu o
próprio regime de castas. Desde então, o que confere status não é mais o
berço (nobre ou não) no qual a cegonha nos depositou, mas fatores que
não dependem só do acaso: trabalho, riqueza, estilo, virtudes morais,
cultura etc.

"Quem somos" depende de como conduzimos nossa vida e
(indissociavelmente) de como ela é avaliada pelos outros. Para obter o
reconhecimento de nossos semelhantes (sem o qual não somos nada), os
objetos que nos circundam ajudam mais do que a barriga cheia; eles têm
uma função parecida com a dos paramentos das antigas castas: declaram e
mostram nosso status -se somos antenados, pop, fashion, sem noção,
ricos, pobres ou emergentes, cultos ou iletrados.

Podemos achar cafonas os objetos roubados pelas meninas e pelos
saqueadores (o consumo de massa desvaloriza seu consumidor), mas o que
importa é que eles roubaram objetos que lhes eram necessários para
existir, para ser "alguém" no mundo. Isso não justifica nem saques nem
arrastões; mas vale notar que, na nossa época, as futilidades são, no
mínimo, tão relevantes e necessárias quanto era o pão para o pessoal de
1789.

Outro aspecto. Houve quem detestou os saqueadores londrinos por eles não
estarem interessados em alterar a ordem social: roubaram para ter as
mesmas coisas que a gente e, portanto, chegar exatamente ao lugar que
nós ocupamos agora. Para usar uma expressão clássica em filosofia, os
saqueadores seriam um caso de "ressentiment".

Nietzsche tomou o termo (e parte de seu sentido) de Kierkegaard.
Modernizando, a ideia é a seguinte: "Não tive sorte ou, então, sou burro
e preguiçoso, acho chato estudar e gosto de dormir. Sou invisível
socialmente e invejo o bem-sucedido, que se pavoneia com seus objetos.
Não quero me sentir culpado de minha condição; prefiro, portanto, acusar
dela o bem-sucedido. Com isso, viverei minha mediocridade como se fosse
o resultado da violência dos privilegiados, que gozam de tudo e não
deixam nada para mim".

Enfim, para se consolar, o ressentido inventa uma moral (social ou
religiosa) pela qual, no futuro, seu perseguidor será destronado pela
revolta ou queimará nas chamas do Inferno.
Nos bares da "facu" de filosofia, nos anos 1970, colegas de direita
acusavam a revolução proletária de ser apenas um projeto ressentido.
Respondíamos que a revolução não era ressentida, porque ela não queria
vingança, não queria substituir a burguesia, apropriando-se de seus
brinquedos: seu intuito era inaugurar um mundo diferente, onde todos
gozaríamos de novos prazeres.

Desse ponto de vista, os saqueadores de Londres, eles sim, seriam simplesmente uns ressentidos, não é?

Pode ser, mas, antes de responder, recomendo paciência: o que hoje
parece apenas "ressentiment" pode ser a faísca de mudanças que nem
suspeitamos. Afinal, o pessoal de 1789 só pedia pão, e olhe o que
aconteceu…

Artigo publicado originalmente na Folha de São Paulo

ccalligari@uol.com.br

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