Aldeia Nagô
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A fauna de meu apartamento. Por Marcos A. P. Ribeiro

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Moro num apartamento antigo, 40 anos de construção, num sexto andar rodeado por centenárias, frondosas e copadas árvores – oitizeiros, mangueiras, paineiras, palmeiras.  Estamos alguns metros acima das árvores, que se estendem como um imenso colchão verde, um jardim suspenso.

Para além das árvores, a extensão de mar visível é encerrada no horizonte pela ilha de Itaparica; matizada de verde durante o dia; pontilhada de luzes à noite.  O apartamento é amplo, muitas janelas e uma varanda; luminoso, ventoso; aberto à luz e aos ventos tropicais. Dessas peculiaridades urbanas e geográficas provém a fauna que circula por ele.

Morcegos esvoaçam pela casa; não sei se com maior frequência no verão ou no inverno.  Entram por uma janela, saem pela outra, passando tão próximos de minha cabeça que posso sentir o leve deslocamento de ar produzido por suas asas. São frugívoros (espero!) e certamente vêm pelas frutas que jazem na fruteira à espera de serem consumidas. Desorientam-se pelos ventiladores de teto que interferem em seu sistema de radar e fazem com que percam a direção. Um deles chocou-se com as pás do ventilador do quarto, enquanto dormíamos, e caiu no chão, atordoado, moribundo. Desde então, dormimos com a porta do quarto fechada.

Traças nas paredes, sempre imóveis, que nem parecem seres vivos, mas pedaços de papelão velho, cinza e branco. Apresentam a forma de duas meias-luas unidas, de cunhas, de losangos arredondados. Encontradiças nos cantos das paredes rentes às cortinas.

Pequenos caracóis que misteriosamente surgem na terra dos canteiros com plantas da varanda. De onde terão vindos? Como terão chegado ao sexto andar? Pelo encanamento, pelo esgoto, arrastando-se muito lentamente pelas paredes externas?

Lagartixas surpreendidas em plena travessia das paredes quando uma luz é subitamente acesa na casa silenciosa. Avançam numstaccato sorrateiro, movimentos rápidos intercalados por breves pausas, com algo de furtivo, algo de acrobático, algo de chapliniano. Moro no apartamento há oito anos e sempre há lagartixas. Serão as mesmas? Quanto tempo vive uma lagartixa? Trata-se de uma família? As atuais são descendentes das anteriores, que já habitavam o apartamento quando me mudei?  Os excrementos são encontrados colados às paredes, inodoros, delicado filete preto com uma pontinha branca.

Mariposas, particularmente após dias chuvosos, quando surge o sol, vêm silenciosamente se fixarem nas portas e paredes; as grandes, quase do tamanho de uma mão, durante o dia. As menores invadem o apartamento à noite, revolteando incessantemente em torno de luminárias, abjures e lâmpadas no teto.

Minúsculas moscas de frutas – drosófilas? – formam uma nuvem esvoaçante, quase imaterial, como uma rede finíssima, em torno do “lixinho” da cozinha, se este não for retirado diariamente.

Bastam dois dias sem limpeza para que finíssimas teias se formem nos banheiros, tecidas por minúsculas e ágeis aranhas castanho-arruivadas que parecem se lançar da pia abaixo numa espécie de rapel.

Besouros voadores de um preto luzidio e um verde metálico cintilante e libélulas debatem-se insistentemente diante dos vidros das janelas, perplexos diante de um estranho ar sólido e intransponível.

Formigas trafegam pelo piso de madeira, em longas filas, como soldados em campanha, como expedicionários com uma missão a cumprir. Quando duas que vêm em direções contrárias se encontram, param por instantes, e como se se cumprimentassem, parecem trocar algum tipo de informação muito importante para suas vidas. Localização de alimentos, perigos insuspeitados?

Pássaros – que minha ignorância ornitológica impede de identificar – vêm pousar na varanda, e cantam, cantam.  A espécie mais comum apresenta plumagem castanha, com o peito amarelado. Algumas vezes, avançando cuidadosamente, pé ante pé, consigo fotografá-los.  Periquitos voam em dupla ou em pequenos grupos, transferindo-se de uma árvore à outra com um alarido quase escandaloso. Urubus voam em altos círculos sobre os edifícios e o mar. Um gavião – consegui identificá-lo com o binóculo – veio pousar no teto de um casarão próximo, e imobilizou-se sob a chuva durante um bom tempo.

Cupins são perceptíveis apenas pelo resultado de seu trabalho: montículos de fino pó que deixam próximos às portas que atacam. As portas são relativamente novas, compostas por madeiras que, garantiram-me, eram “amargas” e, portanto, não agradariam ao paladar dos insetos; além disso, receberam tratamento anticupins. Nada adiantou. Eles estão sempre presentes.

Micos, às vezes em família – num evento raro a ponto de merecer um comentário com minha mulher –, eventualmente cruzam a rua caminhando sobre os fios ou saltando de um a galho a outro.

Nesse apartamento, dois humanos convivem harmoniosamente com a fauna circulante no centro da terceira maior cidade brasileira.

Marcos A. P. Ribeiro é escritor

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