Aldeia Nagô
Facebook Facebook Instagram WhatsApp

A Barbúdia por Zuggi Almeida

3 - 4 minutos de leituraModo Leitura

A galinha era produto nobre nas mesas dos bairros populares em Salvador nas décadas de 70/80. No bairro da Liberdade onde vivi toda minha infância, as galinhas eram criadas soltas nos quintais e ruas sendo recolhidas em galinheiros durante a noite

A ética e o respeito à propriedade alheia imperavam naquela época, e assim fomos criados por nossas famílias. Essas regras só eram quebradas quando um famigerado ladrão de galinhas – título que desmerecia o meliante-, decidia surrupiar umas penosas e pertubava o sono dos moradores da nossa rua. Outra façanha era praticada pelo pessoal da boêmia quando retornava da farra na madrugada e decidia surrupiar a galinha mais gorda do galinheiro de Dona Chica. A ave era preparada às pressas e devorada com farinha, molho de pimenta e bastante cachaça. Na manhã seguinte, Dona Chica enquanto ‘batia’ a massa do acarajé comentava com as vizinhas sobre o sumiço da galinha, embora já soubesse das identidades dos autores do crime.

Galinha no prato de pobre “nas antigas” só aparecia quando alguém da casa estava doente e comia a iguaria para ajudar na recuperação. Também era oferecida ao visitante num fim de semana ou na barbúdia do caruru. A barbúdia – uma corruptela da palavra balbúrdia-, assim era denominada a cerimônia em era servido o caruru de Cosme e Damião na bacia de alumínio para sete meninos.

Era uma farra para criançada.

O ritual consistia em colocar no chão da sala, a bacia com o caruru, vatapá, feijão preto e fradinho, arroz, farofa, milho branco, acarajé, abará, pipoca, banana frita, cana, rapadura e lá no alto da montanha de comida estava uma suculenta coxa de galinha. Apenas uma.

imaginem o que era comer uma coxa de galinha sozinho? Esse era o sonho de qualquer criança da periferia, naquela época. Alí estava a oportunidade de saciar o desejo. A dona da casa ordenava que os sete meninos ficassem em torno da bacia , erguessem o recipeiente acima de suas cabeças enquanto entoavam o canto seguinte:

” Vamos levantar o cruzeiro de Jesus/ Vamos levantar o cruzeiro de Jesus / A minha alegria é a Santa Cruz / A minha alegria é a Santa Cruz…”

Depois da canção repetida por três vezes, a bacia era colocada de volta ao chão e os meninos sentados ao redor, alguns tiravam as camisas , aguardavam o sinal da dona da casa. Os sete pares de olhos focando um alvo único. No cume da montanha do caruru coxa reluzente continuava alheia ao que poderia acontecer a ela após ser dada a largada.

  • Hoje, quando vejo na tv essas competições de futebol americano com a fúria que os jogadores empregam na conquista da bola ovalada, acho que os meninos da minha época eram muito mais agéis com a coxa da galinha do que esses ianques mastodontes atrás de uma pelota.

Quando se ouvia a senha ‘ Já pode” eram sete cabeças que se engalfinhavam sobre a bacia enquanto mãos ansiosas procuravam pela coxa da galinha, que podia ter escorregado dos dedos do primeiro a pegar o troféu, e voltar a mergulhar naquele mar de caruru.
As buscas continuavam até que um menino mais esperto encontrava a coxa, tratava de comer bem rápido ou guardar dentro do calção. Enquanto isso, os outros se deliciavam com o que restava na bacia. Alguns mais pândegos echiam as mãos com caruru e esfregavam no rosto do amigo ao lado. Era uma verdadeira lambança.

Após, encerrada a barbúdia, a dona da casa feliz da vida oferecia a barra da saia para as crianças limparem os rostos e as mãos.
Estava cumprida a obrigação. Assim era dado o agrado e mantido o respeito aos Ibejis, Erês e as crianças, suas protegidas. Alí transpirava-se alegria, a felicidade e a pureza manifestada nas tradições das religiões de matrizes africanas

O lúdico prevaleceu na minha infância com as travessuras dos erês e no dias atuais sinto-me cada vez mais um menino.

Viva São Cosme, Damião e Doum !

Zuggi Almeida é um cronista baiano.
Foto: Pierre Verger

Compartilhar:

Mais lidas

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *