Aldeia Nagô
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A Bíblia do proletariado. Por Lincoln Secco

7 - 9 minutos de leituraModo Leitura
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Apresentar a circulação e difusão da mais importante obra de Karl Marx na língua espanhola foi o desafio enfrentado por Horacio Tarcus. Sua expertise no tema, sua experiência em bibliotecas e arquivos, seus sólidos conhecimentos da história do livro e sua erudição já bastariam para garantir o sucesso da investigação.

A estrutura do livro parece simples. Apresenta a edição prínceps do texto, as edições alemãs, as primeiras traduções, as versões ao espanhol, os resumos populares e a presença atual de O capital no mundo hispano-americano. Mais de 50% da obra é dedicada ao terceiro capítulo em que se narra o périplo de tradutores e editores que produziram as versões ao espanhol.

O autor apresenta com cuidado e respeito os tradutores de O capital desde Correa y Zafrilla, o pioneiro argentino Juan Justo, Wenceslao Roces, Vicente Romano, Manuel Sacristan, Cristian Fazio até a mais ousada e bem-sucedida tradução feita pelo uruguaio Pedro Scaron.

O autor descreve tiragens, capas, formatos dos livros, edições, a trajetória dos editores e dá uma atenção ainda maior para as disputas entre os tradutores. Tarcus traz curiosidades como o sociólogo colombiano Erick Pernett Garcia que teve a paciência de escrever um livro de mais de trezentas páginas em que listou 504 erros tipográficos ou de tradução de Wenceslao Roces.

Tarcus se utiliza com maestria dos paratextos editoriais. Para esclarecer alguma edição ele recorre ao manuseio das obras e à sua experiência como bibliófilo.

Um exemplo está relacionado à ofensiva cultural do Partido Comunista Argentino nos anos 1950. Cartago, editora ligada aos comunistas, lançou uma edição de O capital em 1956. Fechada pelo Governo Frondizi, reimprimiu a obra em 1960 sem nenhuma informação que indicasse se tratar de uma nova edição. Tarcus nos informa que a segunda tem formato menor e “tapas de cartoné color marron”. Ademais, acompanhava a nova edição um índice de temas.

Embora pareça algo simples, apenas um pesquisador que vai além da leitura da bibliografia e dos catálogos e une a investigação com a frequência de muitos anos a livrarias, alfarrábios e bibliotecas pode ter a sensibilidade que Tarcus possui para os detalhes de um exemplar ou de uma edição. O traço mais marcante de Tarcus é a capacidade de combinar a fortuna crítica, os tradutores, o movimento editorial e a conjuntura política de cada período da difusão de O capital.

Para a América Latina (e Argentina em particular) a cultura marxista floresceu com mais força nos anos 1960 e isso determinou sucessivas iniciativas editoriais que refletiam as posições das casas editoriais, dos partidos políticos e a eclosão dos vários marxismos na Europa. Desde a Revolução Russa até 1967 O capital teve 167 edições em 18 idiomas. A editora Dietz, de Berlim Oriental, imprimira mais de 300 mil cópias.[i]

Somente naquele momento os tradutores e editores puderam levar em conta que O capital era um projeto de uma obra inacabada e sujeita a decisões que poderiam romper o padrão editorial de três volumes estabelecido por Friedrich Engels. Para isso contribuiu a edição pela Gallimard das Oeuvres de Karl Marx por Maximilien Rubel (Bibliothèque de la Pléiade) e, na Argentina, a tradução de O capital pelo uruguaio Pedro Scaron.[ii] Entre as inovações discutidas por Tarcus destaca-se a mudança do consagrado termo plusvalia por plusvalor (Mehrwert).

No Brasil essa polêmica só apareceu cerca de 40 anos depois quando a Boitempo lançou a terceira tradução brasileira de O capital[iii]. A editora tem realizado um importante trabalho de publicação das obras de Marx e Engels diretamente do alemão, embora a nova tradução esteja longe de ser superior às anteriores. O novo tradutor escolheu o termo mais-valor em português.[iv]

Uma outra coincidência com a Argentina do início dos anos 1970 é que a nova edição brasileira incluiu a advertência que Althusser escreveu à edição da Garnier-Flamarion de 1969. O auge do marxismo estruturalista no Brasil também ocorreu dos anos 1960 até meados dos anos 1970. A publicação do texto de Althusser na edição brasileira 40 anos depois daquela edição argentina não é um acaso e sim a volta da influência do marxismo estruturalista sobre alguns intelectuais brasileiros no início do século XXI.

Cada grupo que organiza uma tradução como a de O capital pode ter suas inclinações políticas, como a pesquisa de Tarcus revela frequentemente — uma edição alemã de 2009 da Anaconda trouxe um prólogo de Karl Korsch de 1933, por exemplo.

No clímax do althusserianismo “a ‘autorização’ já não provinha de Moscou, mas de Paris, não tinha a garantia do Instituto Marx-Engels-Lenin, mas do pequeno círculo da rue d’Ulm”, escreve Tarcus com ironia. Raúl Sciarretta (1922-1999), o tradutor argentino que verteu aquela edição francesa, foi um “professor socrático de pequenos grupos extrauniversitários. De difícil escrita, propenso à oralidade, foi filósofo secreto de duas gerações argentinas de epistemologistas e psicanalistas”.

O próprio Pedro Scaron reagiu com ironia àquela edição e escreveu que não havia feito referência à tradução de Sciarretta porque ela só compreendia capítulos I a IV da obra de Marx, “precedidos de uma introdução teórica de Louis Althusser na qual recomenda ‘deixar deliberadamente de lado, em uma primeira leitura’, os capítulos I a III. Seguimos seu conselho”.

Tarcus não esconde uma admiração pela equipe que publicou O capital pela Siglo Veintiuno: Jose Aricó, Miguel Murmis e Pedro Scaron. Segundo ele, ali se confluíram três tradições de esquerda: o comunismo, o socialismo e o anarquismo, respectivamente. Scaron antecipou problemas que só depois da nova MEGA (Marx-Engels Gesamtausgabe) foram enfrentados pelos tradutores. A título de exemplo, a nova edição brasileira do Volume II de O capital incluiu algumas (e não a totalidade) das variantes dos manuscritos de Marx deixadas de lado por Friedrich Engels, mas segundo a escolha arbitrária[v] daquilo que o tradutor considerou mais importante reproduzir.

Ao final da leitura do livro de Tarcus percebemos que por baixo da organização simples dos capítulos há um movimento complexo. As edições que se sucederam no tempo traziam a marca de uma cultura operária letrada. O capital era uma “bíblia” laica que permitia muitas leituras, assim como a Bíblia cristã permitiu o aparecimento de numerosas seitas religiosas. Era um texto ao qual se recorria para autorizar esta ou aquela política. Mesmo os homens e mulheres militantes que nunca o leram, ouviram as suas palavras: mercadoria, jornada de trabalho, exploração, mais valia…

Aquela cultura operária de livros, jornais e folhetos populares do início do século XX desapareceu. É certo que o livro impresso permanece e a juventude redescobre sua importância para organizar novos grupos de esquerda. Mas um mundo transtornado pela revolução informática, pela globalização, financeirização, pela automação e fragmentação do processo produtivo e, especialmente, da própria classe trabalhadora, não exige nova forma de leitura de O capital?

Não por acaso a pesquisa de Tarcus termina com a apresentação dos resumos de O capital. O que demonstra a vitalidade de um livro que circula em vídeos, aulas, leituras em voz alta, excertos, quadrinhos e, no Japão, até em mangá. Por outro lado, o próprio texto alemão, como o autor escreve, se transforma e se revela como um palimpsesto com os múltiplos rascunhos reescritos por Marx.

O livro de Horacio Tarcus é também uma bela homenagem a editores e tradutores que ao longo de 150 anos se esforçaram para difundir a obra seminal de Marx: La Biblia del proletariado.

*Lincoln Secco é professor do Departamento de História da USP. Autor, entre outros livros, de Caio Prado Júnior: o sentido da revolução (Boitempo).

Referência


Horacio Tarcus, A Bíblia do proletariado: tradutores e editores de O Capital no mundo hispano falante. Tradução: Lucas Maldonado. Cotia, Ateliê Editorial, 2021, 120 págs.

Notas


[i] “Alcuni dati sulla fortuna del Capitale”, Crítica Marxista, anno 5, N. 6, novembre-dicembre 1967.

[ii]Os primeiros quatro volumes foram publicados a partir de julho de 1975 pela Siglo XXI na Argentina.

[iii]Além de uma tradução feita em Portugal que pouco circulou fora daquele país, houve três traduções diferentes dos três volumes de O Capital em português realizadas no Brasil. A primeira delas por Reginaldo Sant’anna para a editora Civilização Brasileira nos anos 1960; a segunda nos anos 1980 por Flávio Kothe, sob supervisão de Paul Singer, para a Editora Abril Cultural (esta é seguramente muito melhor do que a nova edição); a terceira foi traduzida por Rubens Enderle e o volume I publicado por Boitempo Editorial em 2011 (entre os textos de apresentação há o de Louis Althusser).

, 30-11-2020. https://aterraeredonda.com.br/apontamentos-sobre-a-primeira-edicao-francesa-do-capital/

[v]“A Mega, além da versão de Engels, edita os manuscritos em sua integralidade, o que revela enormes diferenças em relação à montagem feita por Engels. Em minha tradução dos livros 2 e 3 do Capital, serão incluídas as variantes mais importantes (por mim selecionadas) dos manuscritos”. Rubens Enderle, “Tradutor de ‘O Capital’ explica os desafios enfrentados na versão do texto de Karl Marx”; in: https://www.uai.com.br/app/noticia/pensar/2013/04/20/noticias-pensar,141787/as-ideias-e-as-palavras.shtml. Acesso em 15 de setembro de 2019. Se se trata, para o novo tradutor brasileiro, de escolher Engels ou Enderle como o compilador dos manuscritos de Marx, vamos seguir seu conselho: Engels continua (infinitamente) melhor.

Artigo publicado originalmente em A Bíblia do proletariado – A TERRA É REDONDA (aterraeredonda.com.br)

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